Não celebrámos os 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães com a dignidade merecida. O programa das comemorações dos 500 anos de Camões em 2024 está esquecido. Nós, que andamos sempre a bater no peito para tilintarem as medalhas do nosso passado, mostramo-nos depois arredios da nossa história como se tivesse peçonha. Como se a vergonha de tivesse apossado de nós. Deixámos que os espanhóis colocassem Magalhães na sombra de Elcano, por inépcia, e agora esquecemos Camões por estultícia – escolho esta palavra por me parecer polida.
Poderão argumentar que Camões é celebrado todos os anos. Que lhe demos a honra de ser patrono da nossa língua, e de ter um dia nacional: 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. (Tão maltratado anda Camões, como Portugal, como as Comunidades – mas isso já é pano para outra vestimenta.) Se realmente fosse condignamente celebrado todos os anos, talvez o país tivesse do seu poeta-maior, outra ideia, outra imagem de grandeza que hoje não tem; e que, a meu ver, as novas gerações nunca terão.
Na sociedade portuguesa, Camões transformou-se numa eminência parda, venerado de uma forma abstracta, mas a que ninguém liga. Está presente nas nossas bibliotecas, na maioria das vezes em edições de luxo, mais para capricho estético que para honra do poeta que, na verdade… ninguém lê. Por vezes, aparece num discurso de circunstância, sempre com os mesmos e estafados versos, como se a isso se resumisse a sua obra. E se ousamos falar dele aos estudantes, logo estes exclamam: “Abrenúncio!” (Talvez não usem bem esta palavra, mas essa é a ideia). Estão tão massacrados pela forma desajustada como Camões lhes é servido no ensino, que dele querem é distância. Muita distância. No liceu da Covilhã, eu tive a sorte de ter o professor António Serra que exultava com a lírica e com a poesia épica do poeta. Amava e levou-nos a amar a grandiosidade da sua obra. Mas, nos tempos que correm, quantos alunos têm a sorte de encontrar um professor tão empolgado e motivado, como eu?
Então, o que resta de Camões? O deprimente filmezinho a preto e branco, de Leitão de Barros, com que a RTP nos brinda repetidamente? A ideia fantasiosa de um espadachim e namoradeiro? Não falo das universidades, mas é a isto que está reduzido para o grande público?
Creio que as comemorações dos 500 anos do nascimento de Luiz Vaz de Camões são o cabide ideal para pendurarmos uns quantos objectivos que me parecem prementes: reler, reinterpretar e valorizar a sua obra, repensar o ensino da poética camoniana, mudar a imagem frívola que as pessoas têm de Camões como personagem romanesco, recuperando o verdadeiro e sofrido homem, com a sua centelha de genialidade. É pedir muito? É pedir muito quando se fala do homem que firmou a língua portuguesa, escreveu a grande epopeia portuguesa – Os Lusíadas – um tesouro literário que vai além da esfera literária, e desempenhou um papel vital na formação da identidade nacional e na cultural de Portugal? Em Janeiro de 2024, permitam-me este simples alerta, para ver se ainda vamos a tempo de salvar esta janela de oportunidade, para nos redimirmos deste nosso imobilismo, para irmos além de mais um discurso de circunstância no próximo dia 10 de Junho.
Escritor, autor do romance biográfico de Camões “O Livro do Império”