É difícil imaginar um dia em que não venham notícias insólitas sobre o Brexit. Mas a última semana conseguiu desafiar a imaginação de muitos. Depois de Theresa May ter visto o Speaker, John Bercow, travar a terceira votação do seu acordo (ou não-acordo, dependendo do ponto de vista) até mudança substancial, o Reino Unido mergulhou numa crise institucional sem precedentes.
May perdeu toda a legitimidade. Esta terceira votação até poderia ter passado. Por trás estava a ameaça que caso chumbasse, a Primeira-Ministra britânica iria pedir um adiamento de dois anos a Bruxelas. Nem hard brexiters nem soft brexiters queriam esse desfecho. Os primeiros temiam que um adiamento tão longo pusesse em causa a saída do Reino Unido da União Europeia. Os últimos receavam que mais dois anos de negociações infinitas drenassem a Grã-Bretanha, já paralisada politicamente, decaída autoestima e prestígio internacional. Por isso, à terceira podia ser de vez.
Mas não foi. Não só não foi, como o impasse levou a que os poderes executivos passassem temporariamente para o Parlamento, para que ontem se votassem oito moções indicativas. Na verdade, dessas oito, cinco eram diferentes versões de acordos comerciais mais ou menos institucionalizados. As outras três propunham 1) uma saída sem acordo; 2) a revogação do artigo 50 – que implicava a permanência do Reino Unido na União Europeia; e 3) a confirmação à posteriori pelo voto popular do que quer que fosse decidido no Parlamento. Ainda durante os debates das moções, a imprensa fez saber que a Primeira-Ministra tinha declarado numa reunião à porta fechada que se demitia se a sua versão do acordo fosse aprovada.
Não é possível saber se esta disposição teve impacto ou não – até porque May terá que enfrentar obstáculos para voltar a levar a seu acordo ao Parlamento e o relógio está a contar. Mas o que é certo é que todas as oito moções foram chumbadas. Diria que reflete, acima de tudo, a disposição de Westminster e da própria opinião pública britânica. Um jornal publicou uma sondagem que mostrava que a população também não era capaz de se unir à volta de uma das soluções.
Onde é que este impasse leva o Reino Unido? Ninguém sabe. A todas as hipóteses junta-se agora uma nova, a da substituição de May, eventualmente por um conservador da linha dura, que dirija um Brexit mais brusco. Mais uma semana, mais um passo para um beco sem saída.
No sábado, um milhão de britânicos encheu as ruas de Londres a pedir um segundo referendo. Tenho defendido que esta forma de democracia participativa não é conveniente para a saúde da democracia representativa que rege a vida dos britânicos e da maioria dos estados europeus. Cabe aos representantes das populações decidirem o que é melhor para os seus constituintes, porque cada um de nós vota de acordo com o seu próprio interesse, respondendo a um conjunto de problemas que não estão necessariamente relacionados com o assunto do referendo em si. E o resultado é esvaziar os representantes das suas próprias competências, levando-os a ter de defender posições em que não acreditam e que consideram prejudiciais ao país. E, neste caso, a implementação da vontade popular tem sido tão difícil, que os britânicos, elites e opinião pública, caíram num profundo cansaço democrático.
O processo do Brexit tornou-se tão complexo, por todas a razões acima mencionadas e por divisões políticas e sociais aparentemente irreconciliáveis, que a única saída pode ser mesmo começar de novo. E aí o recomeço teria que passar por um segundo referendo.
Ao contrário do que muitas vezes se diz ou escreve – que os britânicos aprenderam a lição e que votariam de forma diferente – não há quaisquer garantias sobre se o resultado de um novo escrutínio popular. As razões do voto no Brexit são profundas, relacionadas com a identidade britânica, com ressentimentos relativamente às questões da globalização e da automação, com a procura de bodes expiatórios para problemas do dia-a-dia. Mas o Reino Unido precisa de um recomeço. De um novo ponto de partida, que até pode ser o mesmo, mas já noutro contexto. Sem isso, este processo irá continuar a arrastar-se até quebrar. E quando a política é deixada ao acaso, em contexto de cansaço democrático, as consequências raramente são positivas.