Um amigo, há tempos, mostrou-me um mapa-mundo no qual, segundo me avisou previamente, tinha assinalado a verde os países em que coexistiu um governo composto por um partido comunista e um regime democrático. Era, naturalmente, uma piada – o mapa estava todo em branco pois nunca aconteceu a consolidação democrática pela mão de partidos comunistas. Mas o lado trágico da piada é que o seu pressuposto inicial não é contestado unanimemente. Após décadas de casos-práticos dos mais terríveis atropelos à liberdade por regimes de ideologia comunista, sobrevivem ainda largas esperanças de que as manchas verdes aparecerão no mapa. Não é só nostalgia de quem passou pelo maoismo ou se deslumbrou com a URSS no pós-II Guerra Mundial. É um fenómeno tristemente contemporâneo – basta olhar para a Venezuela.
Anos após o apoio da Revolução Bolivariana de Chávez na produção de petróleo, que sustentou o regime (leia-se, o enriquecimento das suas elites, as nacionalizações, o controlo estatal de toda a vida pública), a Venezuela acelerou rumo ao abismo que se avistava no horizonte. O “socialismo internacionalista” de Chávez, cuja propaganda assegurava prosperidade e harmonia social, promoveu miséria e conflito. Escasseiam os produtos básicos de alimentação e higiene, as filas nas ruas para abastecimento familiar agigantam-se, a electricidade teve de ser racionada, a inflação aproxima-se dos 200% e a criminalidade violenta disparou (pior, só nas Honduras). Note-se que o tormento venezuelano não é meramente económico e social, mas sobretudo político. Depois de Chávez implementar o seu simulacro de democracia, Maduro respondeu à contestação social com o reforço da repressão política e militar sobre quem o contraria. Esvaziou os poderes do parlamento, que já não controlava, prendeu adversários (e alguns apareceram misteriosamente assassinados), decretou o estado de excepção e centrou em si plenos poderes. Num país à beira de uma guerra civil, já não sobram instituições políticas para além do poder soberano de Maduro e das forças armadas – uma ditadura, portanto.
O presente da Venezuela é uma consequência directa, esperada e prevista pelo seu passado. E, no entanto, isso nunca dispersou os apoios ao regime venezuelano. No exótico mundo das artes, os milionários norte-americanos Sean Penn, Michael Moore e Oliver Stone juntaram-se a Chávez na sua luta ao capitalismo. Na política internacional, Pablo Iglesias e o Podemos espanhol foram financiados, tipo partido-satélite do regime, por Chávez; Jeremy Corbyn (o líder vermelho do Labour britânico) louvou as grandes conquistas de Chávez; e o grego Alexis Tsipras (do Syriza) apontou desde há muito o regime venezuelano como exemplo a seguir.
E em Portugal? O PCP ainda há dias reafirmava a sua solidariedade para “com o governo constitucional do Presidente Nicólas Maduro” contra “a agressão orquestrada pelo imperialismo norte-americano”, enquanto um seu eurodeputado acusava a imprensa internacional, enquanto força reaccionária, de “recuperar a mentira e os piores mecanismos para perturbar a América Latina”. No Bloco de Esquerda, louvaram-se os sucessos de Chávez “contra o imperialismo e contra o FMI”, na convicção de que, “enquanto que na Europa a democracia está a falhar, na Venezuela a democracia participativa tornou-se num sinal de identidade”. Está na cara.
Mas não só. Falar de Portugal e da Venezuela obriga a não esquecer a tolerância institucional que o regime de Chávez e Maduro conheceu por cá. Sim, por um lado, é justo apontar o dedo e ostracizar a esquerda (nacional e internacional) que, por obstinação ideológica, tapa os olhos às mais intoleráveis agressões a direitos e liberdades dos povos sob “governos revolucionários”. Mas, por outro, é igualmente necessário lembrar que Portugal, pela mão de PS-PSD-CDS e sob o argumento dos interesses económicos não terem ideologia, deu privilégio à negociação com tais regimes – Angola, China, Venezuela – onde era mais fácil introduzir empresas portuguesas. O problema dessa opção estratégica é que a instabilidade política e económica nesses países desaconselha a celebração de acordos, face ao risco de incumprimento. Como agora se vê: se não tem dinheiro para papel higiénico, não é de esperar que a Venezuela cumpra os contratos com empresas portuguesas para adquirir computadores ou construir estradas, no valor de 1,6 mil milhões de euros, que Paulo Portas negociou em 2014. Pois é, se calhar não foi boa ideia apostar na Venezuela.
É assim que a queda iminente e já inevitável da Venezuela deixará órfãos esquerda e direita. Uma por obstinação ideológica (PCP-BE), outra por ganância (PSD-PS-CDS). A cegueira não tem ideologia.