Fez ontem, 1 de Abril, cem anos que faleceu, na Madeira, o Beato Carlos, último Imperador de Áustria e Rei apostólico da Hungria. Tinha chegado a essa ilha, na companhia da sua mulher, Imperatriz Zita, a 19 de Novembro de 1921. Nesse momento, ao avistar do barco a Igreja de Nossa Senhora do Monte, junto à qual viria a exalar o seu último suspiro, comentou: “Que saudades aquela igreja me dá! Como me lembra as igrejas do meu país! Certamente é dedicada a Nossa Senhora: vamos depois visitá-la.” Não sabia então que, menos de cinco meses depois, aí seria sepultado. Os seus restos mortais são, sem dúvida, a mais preciosa relíquia desse templo, bem como do arquipélago que, com razão, considera o Bem-aventurado Carlos como madeirense.

A questão da nacionalidade dos santos é polémica: é-se santo da terra onde se nasce ou, pelo contrário, onde se morre?! É verdade que, como portugueses, fazemos questão em defender a nacionalidade lusitana de todos os nossos compatriotas, nomeadamente Santo António de Lisboa, Santa Beatriz da Silva e São João de Deus. Mas os três, embora portugueses de nascimento e família, morreram, respectivamente, em Pádua, em Toledo e em Granada, cidades que, por esse motivo, os reivindicam como seus. Também é certo que consideramos muito nossa a Rainha Santa Isabel porque, apesar de nascida em Aragão, foi pelo seu casamento Rainha de Portugal, aqui viveu, morreu e está piedosamente sepultada em Coimbra, sendo antepassada de todos os nossos monarcas posteriores, hoje representados pelo Chefe da Casa Real portuguesa, o Duque de Bragança.

Não é fácil, portanto, encontrar um argumento logicamente consistente que, ao mesmo tempo, justifique a portugalidade de João de Deus, Beatriz da Silva e António de Lisboa, sem ceder na nacionalidade lusitana da Rainha Santa, neste caso não originária, mas adquirida por via do seu régio casamento. Esta é, contudo, uma questão vã, porque se, literalmente, católico é sinónimo de universal, os santos são os mais universais dos católicos porque, enquanto cidadãos dos Céus, o são também de toda a Igreja e do mundo inteiro. Mas a sua universalidade não deve desvalorizar a sua especial relação com os que foram seus conterrâneos à nascença, durante a vida ou à hora da morte, que é, afinal, o nascimento para a vida eterna. Se o principal mandamento cristão é o preceito da caridade, e esta deve ser vivida ordenadamente, dando prioridade aos que estão geograficamente mais perto, ou seja, ao próximo, então cabe aos compatriotas dos santos uma especial proteção por parte destes seus gloriosos conterrâneos.

Por uma circunstância certamente providencial, o Beato Carlos viveu os últimos meses da sua vida em Portugal. Mas não é esta a sua única relação com o nosso país, a que também estava ligado por razões familiares. Com efeito, Carlos I de Áustria e IV da Hungria era filho do Arquiduque Otão de Habsburgo e de sua mulher, a Princesa Maria José, filha do Rei Jorge I de Saxe e da Infanta portuguesa D. Maria Ana, filha da nossa Rainha D. Maria II e do Rei consorte D. Fernando II. Assim sendo, o Beato Carlos de Áustria tinha, pela sua avó materna, um quarto de sangue português.

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Há, ainda, um outro parentesco, mais remoto e por afinidade, do Beato Carlos I com a Família Real portuguesa: o seu avô paterno, o Arquiduque Carlos Luís de Habsburgo, foi casado, em terceiras núpcias, com a Infanta D. Maria Teresa de Bragança, filha de el-Rei D. Miguel I de Portugal. Portanto, por sua mãe, o Beato Carlos era neto de uma Infanta portuguesa e o seu pai era enteado de uma outra Infanta lusitana, dando-se a casualidade de estas duas princesas serem, respectivamente, oriundas da linha liberal e do ramo legitimista da Casa de Bragança.

Pelo seu casamento, o Imperador Carlos estabeleceu mais uma relação de parentesco com Portugal. Com efeito Zita, a última Imperatriz de Áustria e Rainha da Hungria, era filha de Roberto, Duque de Parma – que, dos seus dois casamentos, teve 24 filhos! – e de sua segunda mulher, a Infanta D. Maria Antónia de Bragança, filha do referido D. Miguel I de Portugal, e irmã da madrasta do pai do Beato Carlos. Portanto, o santo Imperador de Áustria, para além de ser neto de uma Infanta de Portugal e seu pai ser enteado de outra Infanta portuguesa, casou com uma princesa que era filha de uma Infanta de Portugal: três razões que, acrescidas ao facto do Beato Carlos ter morrido em território nacional, permitem considerá-lo, um santo português.

O panteão da família Habsburgo é a cripta da igreja dos capuchinhos, em Viena. É da tradição que, ao chegar o féretro à igreja onde o falecido vai ser sepultado, esta se encontre fechada. Quem preside ao cortejo fúnebre bate à porta e, de dentro, alguém pergunta: ‘Quem é?’ Responde-se então com a listagem de todos os títulos do defunto, a que se segue uma resposta lacónica: ‘Não conheço’. Repete-se o cerimonial, sendo abreviada a enumeração das honras do morto, mas sem que se abra a porta, que é percutida uma terceira vez. Ouvida a sacramental pergunta sobre a identidade do cadáver, responde-se simplesmente: ‘Um pobre pecador’. É, então, que a igreja se abre para acolher quem, despido de todas as vaidades mundanas, pode, finalmente, aí receber sepultura cristã.

Se o mundo e a Igreja têm sempre necessidade de santos intercessores que sejam exemplo para o mundo e estímulo para os cristãos, há hoje uma especial urgência de estadistas que tenham sido heróicos no exercício das suas funções públicas. Foi o caso do Bem-aventurado Imperador de Áustria e Rei da Hungria, que não apenas foi um excelente fiel cristão como um exemplar marido e pai (cf. Elizabeth Montfort, Carlos e Zita de Habsburgo, Itinerário espiritual de um casal, Lucerna, 2022), mas também o único Chefe de Estado moderno que mereceu, até à data, as honras dos altares.

Não faltam monarcas santos, como a nossa Rainha Santa Isabel, São Luís de França, Santa Margarida da Escócia, o Rei São Fernando de Castela, etc. Também o Rei Balduíno, da Bélgica, está em processo de beatificação, nomeadamente por se ter recusado, por uma questão de elementar coerência cristã, a promulgar a lei do aborto, heróica atitude que poderia ter acarretado a perda do trono e, até, a queda da monarquia belga. Até à data, ainda nenhum Presidente da República foi beatificado ou canonizado, mas poderia sê-lo o Chefe de Estado que, tendo a coragem do monarca belga, fizesse uso dos instrumentos constitucionais e legais de que dispõe, para não promulgar a iníqua lei que pretende legalizar a eutanásia. Queira Deus que, por intercessão de Maria, nossa Rainha e Padroeira, e do Beato Carlos, Portugal tenha essa honra e graça.