A 2 de Janeiro, 31 “personalidades de esquerda” rogaram por petição “o entendimento das forças de centro-esquerda e esquerda, visando constituir uma maioria parlamentar e um Governo [maiúscula deles] que tenha como propósito a aplicação de medidas indispensáveis para a melhoria do bem-estar da população”. No dia 4, foram 100 as “personalidades de esquerda” a reclamar “uma maioria plural de esquerda” nas eleições, visto que, “seja qual for o futuro, só essa pluralidade pode construir o diálogo, a alternativa e a resistência”. Escrevo a 7, e estranho que ontem 350 “personalidades de esquerda” não tenham produzido apelo similar. Mas antes do final do mês é plausível que milhares de “personalidades de esquerda” se juntem em dúzias de peditórios. À esquerda não faltam “personalidades”: falta noção do ridículo e falta vergonha.

Uma coisa de cada vez. Primeiro, a ironia. É interessante notar que os apelos à união das esquerdas nem sequer conseguem unir os esquerdistas que assim apelam. É evidente que a acumulação de abaixo-assinados traduz ódios ou pelo menos divergências entre os respectivos subscritores. Dado que Fulano não aprecia Sicrano, não o convida para o grupo dos eleitos (“eleitos” é força de expressão), o que motiva Sicrano a redigir um texto alternativo e a convidar Beltrano. Naturalmente, Beltrano detesta Fulano e cinco integrantes da “lista” de Sicrano, pelo que, com 185 “personalidades” despeitadas, já iniciou a sua própria carta aberta, a publicar logo que o “site” do “Expresso” ressuscite. E o prof. Boaventura assina as cartas todas.

Depois vem a soberba. Conforme a designação indica, as “personalidades” não são quaisquer palermas: são palermas que se julgam ungidos de um estatuto especial, atribuído pela política, a universidade (digamos), o cançonetismo, o “jornalismo” ou as “artes”. Aqui não se encontram cantoneiros, operadores de “telemarketing” ou despachantes, ofícios “normais” que não habilitam o titular a orientar-se sozinho e muito menos a influenciar o próximo. As massas brutas carecem de orientação. Por sorte, acima delas paira uma elite esclarecida generosamente disponível para orientá-las através do exemplo. Se a sra. dona Pilar del Rio, cuja sabedoria é infinita, vota em marxistas, não cabe na cabeça de ninguém que o Zé Luís, bancário na Trofa, arrisque fazer diferente. E se o sr. Abrunhosa, que comete uns discos, deseja que os marxistas preencham por completo o parlamento, seria absurdo que a Isabel de Sousa, pasteleira em Ourém, discordasse. Igualdade sim, mas com limites.

Por cá, os comediantes profissionais, em geral de esquerda, em geral possuem a graça de uma torradeira avariada. Em compensação, os comediantes acidentais são genuinamente engraçados. A lengalenga dos 100 chega a referir a necessidade de “alternativa” e de “resistência”. Alternativa a quê, santo Deus? Resistência a quê, virgem santíssima? Esta tropa fandanga é a pura representação do “sistema”, naquilo que o “sistema” tem de mais bolorento e daninho. Gostem ou não (gostam, gostam), em larga medida eles são o poder, que miseravelmente ocupam desde 2015 e espantosamente acumulam com a devoção infantil, e algo macabra, do Maio de 1968, dos barbudos cubanos ou dos próprios sovietes. Ainda que usufruam de privilégios vedados a uns 98% dos restantes portugueses, mantêm o imaginário da “luta” com a extraordinária convicção de um vegetariano que vai na segunda dose de cabrito.

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Do alto da alucinação e do grotesco, da presunção e da pompa, estas petições e peticionários têm genuína piada. Só perdemos a vontade de rir quando, sob o humor involuntário, nos lembramos de que a influência e as intenções desses bandos são os maiores sintomas do nosso imenso atraso de vida. Dito de outra maneira: estamos em 2022. E após todas as proezas do comunismo assumido ou dissimulado, um pequeno país castigado há décadas pela doença colectivista, e pela pobreza, o autoritarismo e a corrupção anexas, continua a admitir que a pertença à “esquerda” constitui sinal de orgulho e distinção. É como se, por cima do rasto de destruição e morte, a peste bubónica gozasse até hoje de razoável prestígio. Quando vejo uma criatura confessar-se de esquerda, imagino-a sempre a proclamar: “Sim, de facto considero que a acção de luta e resistência da bactéria Yersinia pestis é o único caminho para a consagração do ser humano na sua plenitude.” E se lhe lembramos a devastação, a resposta não falha: “Essa não era a peste verdadeira”.

Loucura, no sentido exacto do termo? Evidentemente. Porém, é injusto acreditar que loucos são apenas os consumidores dos sucessivos “manifestos”, e não os oportunistas que os assinam. Mesmo os oportunistas não parecem regular bem, e a transformação da maluquice num negócio rentável não confere alta automática aos malucos. Para lá do oportunismo, do cinismo e da hipocrisia, acho sinceramente, e com imenso respeito, que a vaidade dos esquerdistas com a esquerda que afinal escolheram reflecte psicoses graves. Nada ali se prende com a aflição face às desigualdades (que aliás praticam) ou as opressões (que de resto exercem), e sim com o mero prazer de se dizerem “de esquerda”. A palavra enche-lhes tanto a boca que a última sílaba solta-se pelas narinas, feito mostarda. Tamanha “superioridade moral” não disfarça a inferioridade emocional, alimentada por obsessões, tiques, transes.

As ladainhas dos 31, dos 100 e dos 589 destinam-se ao público em geral. Deviam ser endereçadas ao corpo clínico do Júlio de Matos. Embora assinem inúmeras cartas, as “personalidades de esquerda” não jogam com o baralho todo.