Foi o mais lúgubre início de um Conselho de Ministros de que há memória. As sondagens indicavam uma terrível queda de popularidade do governo, como se este fosse constituído por um miserável bando de leprosos. A coisa era tanto mais extraordinária quanto ainda há um mês atrás tudo parecia correr no melhor dos mundos, com as inaugurações da praxe a sucederem-se vertiginosamente, entre discursos vitoriosos e convívios festivos com militantes, sempre acompanhados da boa disposição galhofeira do primeiro-ministro e dos ministros que o acompanhavam.
Mas entretanto tinha acontecido aquilo. E aquilo tinha sido o início de uma bola de neve que entretanto não deixara de engrossar, ameaçando arrastar todo o governo consigo. O incidente conta-se em poucas palavras. No final de de uma sessão do debate quinzenal no Parlamento, o ministro da Saúde e a ministra do Trabalho caminhavam um ao lado do outro pelos corredores de S. Bento. A conversa era perfeitamente trivial. Às tantas, o ministro perguntou à ministra quanto tempo costumava ela demorar para, vinda de casa, chegar ao Parlamento. Um quarto de hora, respondeu ela. “Exactamente o que eu demoro”, disse o ministro. “Em que bandas é que mora?”. A ministra disse o nome da sua rua. O ministro riu-se: “É a minha!” A ministra acompanhou-o no riso: “Já agora: em que número?”. “No prédio do número 27.” “Não vai acreditar, também eu!” “Fantástico! Em que andar?”, perguntou o ministro. “No quinto”, disse ela. O ministro ficou branco: “Esquerdo ou direito?” “Esquerdo”, disse a ministra, já tomada por um sinistro pressentimento. O ministro cambaleou e apoiou-se ao muro do corredor. E foi assim que, na presença de três jornalistas que haviam escutado a conversa, descobriram que eram casados.
Escusado será dizer que os jornais e os canais televisivos não falavam de outra coisa no dia seguinte. Os ministros, apesar dos esforços dos jornalistas, revelaram-se incontactáveis. Mas o primeiro-ministro não se conseguiu furtar ao confronto com as televisões à saída da terceira inauguração de uma escola especial para deficientes auditivos. “Eu, que só de estar aqui ouço muito melhor, também não sabia. Mas estou muito contente e já lhes dei os parabéns”, disse, com um largo sorriso afivelado no rosto, enquanto apressava o passo em direcção ao carro, que arrancou a toda a velocidade. A situação era extravagante, mas não seria uma coisa assim que prejudicaria a vida política de um homem reconhecidamente hábil, pensou.
Mas pensou mal, porque desde os dias seguintes que os casos estranhos se sucederam. Por exemplo, quando os ministros do Planeamento e das Infraestruturas e da Habitação começaram a ter um comportamento estranhamente competitivo, como se tivessem quaisquer contas para ajustar há muito tempo. Um dia, num Conselho de Ministros, a discussão tornou-se quase violenta, e o ministro do Planeamento atirou ao ministro das Infraestruturas: “A Mãe sempre te protegeu!”. E ficaram os dois irmãos até agora desconhecidos a olhar um para o outro, e toda a restante gente a olhar para eles. Ou quando o ministro do Mar interrompeu a benjamim do governo, a ministra da Ciência: “Ainda há poucos anos te dava uma surra por menos do que isso”. A filha quase que chorava. “De facto, ela é a cara chapada dele, como é que eu não tinha nunca reparado?”, confessou a ministra da Educação ao ministro da Defesa, de quem no dia anterior havia descoberto ser prima. E estes foram apenas alguns entre muitos outros exemplos, a ponto de os jornais se encherem de notícias sobre “Novos casos de família no governo” e a Direcção-Geral da Saúde se ter sentido obrigada a emitir um comunicado onde afirmava que o problema parecia ser quase exclusivamente ministerial e que só poucos secretários de Estado e chefes de gabinete pareciam ter já sido afectados, sendo além disso casos de parentesco ligeiro. A população em geral não tinha nada a recear.
O primeiro-ministro procurou manter o sangue-frio perante as circunstâncias tão adversas, não sem recorrer por vezes à facilidade de declarar que era órfão, que tinha sido criado por duas tias que entretanto tinham falecido, duas santas senhoras, e que desde novo tinha decidido que apenas se casaria com o país: os seus únicos filhos seriam leis mais justas. Mas até para ele a coisa estava difícil. Os congéneres de outros países telefonavam-lhe amiúde a inquirirem sobre a sua saúde, que receavam minada pela situação do seu governo. A comunicação social, portuguesa e estrangeira, tratava já regularmente o executivo como um caso nitidamente perigoso para a saúde pública, com a excepção superficialmente surpreendente de um cronista conservador que afiançava que a reacção ao governo era fruto dos actuais preconceitos pós-modernos por relação à família e que o governo era, na verdade, uma escola para pais, filhos, esposos e avôs deste país.
A verdade é que era muito difícil lidar com a situação no dia-a-dia. Em particular, e com as eleições à porta, era difícil falar sobre política no Conselho de Ministros. Os ministros passavam o tempo todo a discutir problemas familiares ou a transportar para o governo irritações privadas. Se a ministra das Finanças cochichava com o ministro da Cultura, já se sabia que estavam a combinar a prenda de aniversário para a prima ministra do Ambiente. Se o ministro da Justiça e a ministra do Ambiente se recusavam a falar um com o outro no Conselho de Ministros, era certo e seguro que na noite anterior houvera uma violenta discussão conjugal. Estranhamente, no Parlamento as coisas corriam mais normalmente. A oposição, sem dúvida, criticava a endogamia governamental. Mas as bancadas de apoio ao governo fingiam que nenhum problema existia. Às vezes quase irritantemente, como era o caso da líder de um dos partidos com quem o primeiro-ministro tinha negociado a “solução governativa” e que decidira tratá-lo afectivamente (e com uma equivocidade meditada) por “tio primeiro-ministro”.
Mas o que ocupava mais a cabeça do primeiro-ministro na manhã daquele Conselho de Ministros eram as sondagens. Por causa da praga familiar, a popularidade do governo tinha descido a mínimos históricos. Não surpreende que tenha demorado a começar a falar. E quando começou, fê-lo com uma voz tremelicante. “Meus filhos”, começou. E, por vontade dos ministros, poderia ter acabado aí, tal foi a comoção gerada por aquele “meus filhos”. Como em todos os casos anteriores, era como se antes o soubessem sem o saberem verdadeiramente, e de repente souberam-no inteiramente, como inteiramente o soube pela primeira vez o primeiro-ministro quando pronunciou aquelas palavras. Mas com a força política que o caracteriza, não perdeu tempo com uma afectividade desnecessária. “Meus filhos, continuou, a família é importante, mas as sondagens também o são, e estão terríveis. É a altura de sacrificar simbolicamente a família para melhor a preservar. Estou disposto a declarar que no governo, por definição, não há família; que ela está toda na oposição; e se está toda na oposição, como poderia estar no governo? Em política, o que importa são as definições. E é ao primeiro-ministro que cumpre definir – é isso que o define.”
O entusiasmo foi grande. Houve manifestações efusivas de alegria, coloridas por um amor filial. O primeiro-ministro, patriarcal, ordenou silêncio. “Muito bem! Vou dizer ao nosso homem da Assembleia para atacar e para não ter piedade. Ele é bom nisso. E para falar depois nas televisões. Vão ficar escandalizados, mas vão ter que engolir. E se for preciso o homem volta à carga. Depois podemos aparecer nós. Já não deve existir nada de pé.” Conhecendo o homem, toda a gente se riu: era bem verdade. E um Conselho de Ministros que tinha começado sob tão pesadas nuvens, continuou como que sob um tempo magnífico. A ministra do Ambiente tinha gostado muito, de resto, da cerâmica de uma jovem artista plástica que o ministro da Cultura e a ministra das Finanças lhe haviam oferecido pelo aniversário. Disse que os laços mais profundos são os invisíveis. Era a representação da nova atitude do governo.