1 É verdade: não foi preciso muito tempo. Horas depois do debate do Estado da Nação, o ar político e mediático pareciam varridos por um vento de alívio: declinava-se em vários tons – e continua a declinar-se – antecipadas certezas sobre a “passagem” do orçamento; ofertas de colaboração na patriótica tarefa da sua aprovação ou abstenção; apostas e até vaticínios (quem diria?) de longa vida ao governo; coisas assim. É evidente que há sinais nesse sentido (embora nunca se acautele o suficiente a fantástica produção de surpresa de que a política é capaz),.

Seja como for, um Orçamento de Estado é-nos sempre previamente recitado como um bicho de sete cabeças, e a sua aprovação um animal de setenta cabeças. De repente, não: eis à direita André Ventura na sua actual nova condição política (ainda não consigo defini-la, estou em treinos), a querer que contem com ele, mesmo que retoricamente, histrionicamente e malcriadamente se venha a fazer caro; e à esquerda, Pedro Nuno Santos que por qualquer razão que me escapa, passou do seu “não” frontal, à mão aberta, numa reviravolta que até emudeceu o PS – não se sabendo de momento se pelas boas, se pelas más razões, quer a reviravolta, quer a mudez…

E assim, aparentemente, um destes dias, o OE saltará das cadeiras do parlamento, atravessará o jardim e aterrará no gabinete do primeiro ministro em S, Bento com um “aprovado” por baixo. Sejamos prosaicos: sim, convém a toda a gente – todos temem eleições, todos têm de ganhar as autárquicas, nenhum está certo de saber lidar com uma crise súbita: do PR à ultima bancada do hemiciclo, passando por qualquer dos partidos. Digo bem: qualquer.

O que eu estava era só a falar desta coisa que é a viagem supersónica que às vezes a mais firme convicção política de alguém pode fazer até à mais prudente conveniência política desse mesmo alguém.

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2 Portanto, convém haver OE.

Do que não tenho ouvido falar é o do day after do orçamento que é afinal – dito de forma talvez demasiado expedita – quando começa a aventura governamental “a sério”. Se o orçamento é obviamente o mais forte pilar do edifício governativo, falta-lhe tudo o resto que é imenso: saber o que fazer com ele.

Não vai ser fácil: as oposições, após o seu momento “patriótico”, terão as lentes aumentadas para vigiar o “edifício Montenegro” agora com licença de habitação, e precisarão, à esquerda e à direita, de cobrar politicamente o livre trânsito dado ao OE. Cobrar em seu proveito, bem entendido. Mostrando serviço aos seus.

E é aqui que entrarão em cena tremendas fragilidades. A saber, a parlamentar antes do mais. Interrogados há dias os portugueses destacaram a “estabilidade” como valor no topo da escala. Óptimo, La Palisse não diria melhor, quem é que quer viver num alarido político de baixa qualidade, inconsequente e permanente?

Partindo do principio já de si duvidoso, de que o primeiro ministro achará, de cada vez, um chão de estabilidade, que lhe permita ir governando, eu modestamente, quero lembrar isto: estabilidade sem utilidade política serve de pouco: vai-se andando sem proveito, nem glória. A que chamo “utilidade”? A fazer política que valha a pena, tomando medidas de fôlego, com verdadeira utilidade para o país. Não escrevo reformas porque seria descabido: o país detesta-as, não tem apetite para elas; do lado do governo não há força, nem poder político, mesmo havendo, de vez em quando, assomos delas; do lado da oposição socialista, falha-me agora a memória sobre quantas grandes medidas tomou o PS ao longo de anos no poder? (Então não é agora, OITO anos depois, que os “patrões” descobriram , coitados, que estão “assustados” com a baixíssima aplicação que as governações PS fizeram do Plano de Recuperação e Resiliência?)

Ainda sobre a inquestionável “utilidade” da estabilidade: além do que tem pela frente, Luís Montenegro tem para trás o caríssimo peso do não feito por António Costa. Como justamente, por exemplo, esses apenas 26% de PRR aplicado. Há quase 50 anos que reparo, observo, anoto, como a esquerda perde a cabeça quando uma governação de direita entra em cena e publicita a herança deixada pelos briosos socialistas. Aconteceu sempre, repetiu-se agora: uma parte da herança está á vista desarmada – da inacreditavelmente leviana extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e suas diárias e nefastas consequências, à escola publica; do caos na Justiça á degradação dos serviços públicos passando pela vergonhosa crise da habitação. Outra parte, ficou de baixo da mesa: as dezenas de medidas tomadas pelo PS já fora do prazo político da sua governação, que irão custar milhões porque deixadas sem cabimento orçamental…

3 Escrevi aqui a semana passada sobre a esquerda e as esquerdas e o imenso incómodo – para ser gentil – que sentem quando o poder lhes escapa das mãos e “o diabo” da direita sai do meio penumbroso dos bastidores e sobe à luz da cena.

Hoje confessei algum desencantado cepticismo quanto as tremendas dificuldades políticas e parlamentares que mesmo com um OE aprovado esperam um governo pisando solo tão tremelicante.

Ora tudo isto que é imenso – quase brutal – vai ter de fazer a quadratura do circulo: juntar a estabilidade política e parlamentar que não há à utilidade política que não tem havido

PS: Interessante notar esta aprovação presidencial de vários diplomas (quem paga?) e a reação do líder socialista. Graças a Deus, Luís Montenegro não é parecido com nenhum deles. Não sou eu que eu digo, foram mais de metade dos portugueses. Muito recentemente.