A visita de Xi Jinping a São Francisco para se reunir com Joe Biden foi provavelmente o encontro mais importante, a nível geopolítico, de 2023. Uma série de particularidades gravitam à volta deste encontro, com problemas internos nos EUA e na China e uma série de conflitos globais que envolvem, direta ou indiretamente, as duas superpotências. A China vive um clima particularmente conturbado a nível económico, o que criou tensões sociais como não se viviam há algum tempo no país. Este facto cria pressões significativas para os chineses estabilizarem as relações com os americanos, os seus principais parceiros comerciais e de investimento. Do lado americano, a assombração das eleições presidenciais de 2024 e a possibilidade de ter Trump de volta à Casa Branca, bem como o envolvimento eu(ainda que indireto) nos conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza, faz com que se vivam dias particularmente difíceis. Este encontro seria uma oportunidade para colocar alguma “água na fervura” e retomar conversações, para criar algumas regras de jogo, num mundo em constante instabilidade. A APEC de São Francisco não foi o ponto de partida das conversações, mas sim o culminar de vários contactos entre altas entidades das duas partes, ao longo do ano.

No meio de todas estas questões, há algo que é evidente, a importância que ambos colocam nesta relação bilateral, sendo que Xi Jinping refere mesmo, num discurso durante a visita, que a relação entre EUA e China é a relação bilateral mais importante do mundo. Esta peculiaridade, referida pelo próprio presidente chinês, faz com que esta relação, que alguns referem estar a caminho de alguma “armadilha de Tucídides”, ser na realidade muito mais complexa do que isso. Não poderá certamente ser comparada com a relação EUA-União Soviética no apogeu da Guerra Fria, porque americanos e chineses têm um grau de interdepência muito maior do que os americanos tinham com os soviéticos, principalmente a nivel económico. Os EUA são essenciais para a estabilidade da economia chinesa (e vice-versa). Mais que isso, para a própria estabilidade da sociedade chinesa. As trocas comerciais e de investimento durante a Guerra Fria, entre EUA e soviéticos, eram de residuais a quase inexistentes.

Esta codependência tem um efeito apaziguador, quase como se tratasse da posse de armamento nuclear (certamente o resultado é idêntico, o receio da destruição mútua). Existe muito de positivo nesta característica da relação bilateral, sendo que o incentivo para a cooperação, não só económica mas noutras áreas críticas para o mundo, é muito significativo. Essas áreas foram mencionadas durante a visita, principalmente o clima, a regulação da inteligência artificial, o controlo de narcóticos, e também, o reativamento das conversações de alto nível em questões militares. Estas últimas suspensas desde agosto de 2022, o que o Pentágono considerou um potencial de conflito, principalmente com a possibilidade de confrontos entre a marinha chinesa e os aviões militares americanos no Mar do Sul da China.

Isto não invalida que existam conflitos praticamente impossíveis de resolver entre os dois, como o caso de Taiwan. O Estreito de Taiwan é um dos principais focos de conflito no mundo. Se tivessemos de nomear os principais “hotspots” para o despontar de uma guerra mundial, a região seria sem dúvida um desses pontos. O estatuto da ilha continua a criar discórdia entre as duas superpotências. Essa é uma chamada linha vermelha para o presidente chinês, que já referiu várias vezes que, apesar de preferir a reunificação pacífica, o uso de força é possível, algo referido mesmo no âmbito da visita à Califórnia. Não obstante, o problema para cumprir este objetivo continua a ser o mesmo, a presença da marinha norte-americana na região, o que cria um equilíbrio perfeito que, pelo menos a curto/médio prazo não irá mudar. O poder americano na Ásia-Pacífico continua dominante, sendo que o custo militar para os chineses de uma operação desta natureza seria muito elevado. Xi Jinping também tem de considerar o custo político a nível internacional, algo que pode observar ao vivo e a cores com o isolamento de Putin devido à invasão da Ucrânia. A China tem investido bastante no seu poder naval, algo que preocupa os americanos, e é também algo que os EUA querem curvar por via da negociação (também presente na agenda desta visita).

É interessante comparar as relações bilaterais atuais da China com a Rússia, com várias intenções de colaboração e a várias vezes referênciada “parceria sem limites”, e a relação dos EUA com a China, que é sempre rodeada de problemas de confrontação. Mas as características, o contexto e o realismo geopolítico dizem-nos que os adjetivos estão algo trocados, devido às contradições que existem atualmente entre chineses e russos. A Rússia é uma economia bastante menos importante para a China do que a dos EUA, e isto faz com que não exista naquele caso o equilíbrio e a interdependência que existe entre chineses e americanos. E esse equilibrio será necessário no futuro, atendendo ao facto de que China e Rússia são rivais na luta por influência na Ásia central, tanto por territórios, como por recursos naturais ou nas relações com países da região. Historicamente, chineses e russos desconfiam mutuamente entre si, e ainda hoje existem disputas territoriais, que estão mais ou menos adormecidas. Mas a geografia, e principalmente a demografia, irão fazer com que essas disputas possam ganhar novos contornos no futuro. Diria que, por isto, a Rússia e China são atuais parceiros não naturais. Por outro lado, os EUA e China têm demasiadas áreas de potencial colaboração e demasiados equilíbrios militares e económicos para estarem verdadeiramente num choque iminente de superpotências.

Todavia, e por esta nova fase do mundo, em crescente instabilidade (desde a crise financeira internacional, de 2008), é possível que mais acontecimentos potenciadores de conflito possam acontecer e assim empurrar chineses ou americanos para um confronto. É nas conversações contínuas de alto nível, como as que aconteceram em São Francisco, que poderá estar um dos caminhos para diminuir a probabilidade de algo dessa dimensão acontecer.

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