Sim, já sei que a JMJ veio provar que a religião existe, que a fé não é vivida em todo o mundo do mesmo modo e que o ateísmo não é uma etapa obrigatória na evolução da espécie humana. Mas quanto mais me impressiona o entusiasmo em torno desta jornada mais se me torna óbvio que ela só foi possível em Portugal porque, em 2019, a sua vinda foi patrocinada por um governo de esquerda e, não menos importante, um governo apoiado pela extrema-esquerda.

Também não foi irrelevante que o então autarca da capital fosse socialista e que o presidente da República, católico convicto e oficialmente social-democrata, por essa época dividisse o seu mandato em duas estações ao longo de cada ano: aquela em se dedicava a deixar-se fotografar a mudar de calções de banho e a outra em que assinava por baixo tudo aquilo que o Governo fazia, fosse esse tudo a não recondução de Joana Marques Vidal na Procuradoria Geral da República ou a aprovação das 35 horas na função pública.

Sim, os tempos eram de facto outros em 2019. A extrema-esquerda estava de tal forma ocupada a ser poder que nas vagas críticas que então dirigia ao PS não se vislumbrava rasto de referências à aposta na organização da JMJ em 2022 (a JMJ passaria para 2023 por causa da pandemia COVID). Aliás o que de mais relevante se encontra sobre a igreja católica nesse ano vindo de um dos rostos do BE foi o curso de Verão ministrado por Fernando Rosas no santuário de Fátima a propósito do centenário São Francisco Marto.

Note-se contudo que o empenho das autoridades portuguesas em trazer a JMJ para Portugal foi grande, público e notório: em Janeiro de 2019, viajaram para o Panamá, onde estava a decorrer a JMJ e onde se daria a conhecer o destino da próxima jornada, Marcelo Rebelo de Sousa, Fernando Medina, então presidente da autarquia lisboeta e, na qualidade de representante do Governo, o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo.

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Também se sabe que Marcelo esteve ofegantemente hiperbólico na sua alegria quando a 27 de Janeiro de 2019 no Panamá se ouviu o nome de Lisboa como destino da próxima JMJ, mas, quer a reacção de Fernando Medina, garantindo que a capital portuguesa faria os “investimentos necessários” para a concretização da JMJ, quer a do Governo iam no mesmo sentido: “Eu diria que é de uma alegria absolutamente extraordinária para o nosso país, evidentemente para a Diocese de Lisboa, para a Câmara Municipal de Lisboa, mas claro também para o país, que vê assim reconhecida, mais uma vez, a grande capacidade organizativa que o país tem“, declarou João Paulo Rebelo.

Não duvido também que se em 2023 o governo não fosse socialista estes dias teriam sido de grande tensão. Para começar não teríamos tido apenas uma performance de um Bordalo II mas dezenas delas, e bem mais radicais. Já a manifestação meio envergonhada contra a celebração da JMJ que teve lugar no Martim Moniz teria contado, não com as centenas de pessoas que a agência Lusa diz que lá estiveram (a avaliar pelas fotos terá sido uma centena muito escassa, jornalistas e fotógrafos incluídos), mas sim com milhares de manifestantes.

Pode parecer um paradoxo, mas neste país cujo parlamento funciona no edifício de um mosteiro expropriado aos beneditinos e cuja fundação está ligada a uma bula papal trata-se como erro ou grave anomalia tudo o que no passado não se inseriu, ou no futuro possa não se inserir, na norma republicana, socialista e laica que domina o nosso presente. Assim, qualquer acontecimento que não se enquadre automaticamente nessa escatalogia deve contar para a sua normalização com o patrocínio desta tutela.

Sim, a Igreja sabe que um governo socialista pode recorrer ao jacobinismo para romper os contratos de associação dos colégios com o Ministério da Educação, apesar de estes apresentarem excelentes resultados, mas também sabe que esta Jornada Mundial da Juventude com um governo de direita em Portugal teria sido um calvário, no sentido terreno do termo.

O PS, enquanto partido charneira, tornou-se assim, da Igreja católica às empresas, no garante de que podem existir e exercer a sua actividade sem que se vejam atacados pelas hordas de lunáticos que querem acabar com os lucros em nome da justiça social ou que vislumbram a influência do infante Dom Miguel no altar levantado no parque Eduardo VII (a propósito de miguelismo absolutista, a rainha Carlota Joaquina já passou a mulher empoderada ou continua a reaccionária devassa desenhada pelo heteropatriarcado?) O reverso desta tutela “republicana, socialista e laica” que pragmaticamente se deixou instalar começou por permitir o crescimento do poder do estado e do PS através dele e nele. Agora estamos noutra fase: aquela em que o medo à mudança predomina. Antigamente chamava-se a isto vassalagem.