A desresponsabilização é um atributo nacional, praticado com afinco de forma individual. Desresponsabilizamo-nos em relação ao que não nos diz respeito. Confundimos o direito à privacidade com a justificação para não agir.

Aconteceu isso com a violência doméstica. Seguíamos a instrução de “não meter a colher” – conceito por si só passível de análise. Foi uma caminhada de gerações até à verbalização social e a um enquadramento jurídico que penalizasse práticas de abuso. Até por ser difícil desconstruir a ideia, tatuada numa sociedade machista com anos de privilégio instituído, de que a mulher era propriedade do homem. E a descendência também. Assim bater na mulher e nos filhos foi uma prática justificada pelo estatuto de marido e de pai. A descendência, mais ano menos ano, com sorte, e com mais ou menos ajuda da mãe, lá conseguia sair de casa. Mas as mulheres ficavam. Continuavam a pertencer ao homem, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na pobreza e na riqueza, até que a morte os separasse. Por vezes, a morte vinha, vem, com um tiro de caçadeira.

Foram precisos olhares e ouvidos indiscretos que se atrevessem a romper paredes, a bater à porta com veemência, a chamar a polícia a meio da noite, a querer saber, a não acreditar nas quedas na banheira. Foi preciso que a coragem crescesse em voz. Ao entrar pela casa adentro destaparam-se as nódoas negras, os braços partidos, as violações da descendência. Este sim, um horror capaz de mover a comunidade. As crianças em perigo, desprotegidas, abusadas, foram retiradas aos perpetradores e acolhidas numa sociedade misericordiosa, que as defende e cuida, consciente do potencial que representam. O lar doce lar, deixou de ser palco de tragédias anónimas. Cada vítima identificada tem um nome. Cada nome tem uma voz.

Quantas gerações serão necessárias para se derrubarem outras paredes? Quantas pandemias serão precisas para se irromper pelas casas onde habita quem já não tem voz? Quantos nomes serão gritados nas ruas para não serem esquecidos? Os lares estão cheios de anónimos. De gente que não faz falta, sem potencial, fora de validade. O que distingue a qualidade de vida da população residente em lares, não é apenas a formação dos técnicos, ou a eficiência das instalações, é, sobretudo, ter quem lhe dê voz. É ter quem a reconheça, quem a olhe e veja. A família é responsável por dar voz e por preservar na memória colectiva das pequenas comunidades a história daquela vida. E todas as vidas têm uma história. Em algumas vidas, aquelas que chegam ao final sozinhas, sem família, somos também participantes activos na sua conclusão. Cabe a quem cuida, a responsabilidade do conforto de uma boa morte. Não aconteceu em Reguengos de Monsaraz, como não terá acontecido noutros lares, às 628 vítimas de Covid-19, e às outras, sem estatística, duplamente anónimas, por não terem a doença que importa.

Ao fechar-se o acesso às visitas, aumentou-se o isolamento, a dor e o sofrimento dos que ainda eram acompanhados pela família. Interrompeu-se a dinâmica própria destas instituições, agravou-se a dificuldade na prestação de cuidados. Sem visitas, e com cada vez menos cuidadores formais, eles próprios contaminados, largámos os lares à sua sorte. Olhámos para dentro, impedidos de sair. Justificada a negligência.

A voz que falha nos lares, não é a mesma que falha no país? Não foi a mesma voz que faltou à menina assassinada pelo pai, a Valentina?

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