Em 2013, a BBC censurou uma cena do episódio “The Germans” de Fawlty Towers, a série humorística de John Cleese. Não foi assim tão mau, porque em 2020 retirou mesmo o episódio inteiro do seu serviço de streaming. John Cleese ficou furioso, mas já devia estar à espera: dois anos antes, o director do departamento de comédia da BBC já tinha avisado que, se fosse hoje, os Monty Python, uma trupe de 6 rapazes brancos vindos de Oxford e Cambridge, não teriam oportunidade de fazer um programa de humor na estação.

Também em 2020, a BBC retirou a série Little Britain do seu serviço de streaming, por ser problemático.

Mas não é só na comédia que a estação de televisão inglesa controla o que é dito, de forma a não melindrar quem se possa sentir ofendido. Em 2018 soube-se que ia deixar de convidar pessoas que não partilham da opinião dominante sobre o clima. Dois anos depois, a BBC resolveu omitir partes da letra de Rule Brittania nos famosos concertos The Proms, por ser “racista”.

Por isso, não fiquei espantado quando soube que a BBC tinha suspendido Gary Lineker, apresentador do Domingo Desportivo lá do sítio, por ter criticado no twitter o discurso da Ministra do Interior sobre imigração. É o que se espera de uma organização que convive mal com a liberdade de expressão, principalmente quando é usada para manifestar opiniões que podem ofender alguém. No fundo, uma organização que materializa na perfeição a famigerada cultura de cancelamento e o policiamento do discurso.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este caso permitiu que gente que nega a existência da cultura de cancelamento se tenha chocado com os efeitos da cultura de cancelamento. No fundo, é como uma pessoa negar a existência de cães e aparecer no hospital para tratar uma mordidela de cão. De repente, perceberam que o facto de alguém ser rico, famoso, ter outros trabalhos, poder facilmente ir para outra estação de TV, além de manter as suas plataformas para se exprimir à vontade (como é o caso de Lineker) não impede que possa ser cancelado. E que, apesar de a situação já estar resolvida e Lineker já ter regressado ao trabalho, além do efeito óbvio que terá sobre o próprio, o cancelamento funcionará como aviso para outros apresentadores desportivos, porventura não tão ricos e famosos, que ficam a saber que, se querem continuar a trabalhar, é melhor não expressarem pontos de vista controversos. Da mesma forma que humoristas, ao verem o que se diz sobre os próprios Monty Python, percebem que para ter hipótese na BBC não vale a pena arriscar na comédia. E comentadores percebem que, para serem convidados a falar na televisão, há opiniões que é melhor não expressarem publicamente.

Por isso é que, ao contrário do que muitas vezes se diz, não é ridículo falar-se em cancelamento de JK Rowling por causa das suas opiniões sobre o activismo transgénero. Rowling pode ser poderosa de mais para ser cancelada e os efeitos de um cancelamento podem ser insignificantes, mas toda a gente que não é rica e influente como Rowling fica avisada. É este o clima criado pela cultura de cancelamento e foi contra este ambiente censório que a carta da Harper, A Letter on Justice and Open Debate foi publicada.

A pedagogia do caso Lineker não se esgota aqui. De bónus demostrou duas coisas: 1) o argumento de que precisamos de mais mulheres na política, pois são mais empáticas e menos agressivas, é uma grande balela; 2) as opiniões valem por si e não por quem as emite, apesar de ser mansplaining, de o tema ser imigração e Suella Braverman, filha de indianos, ocupar o lugar de fala, ou lá como jargão identitário chama agora a esse tipo de prioridade discriminatória.

Só temo pela saúde das pessoas que habitualmente seguem a cartilha woke e que, de repente, deram por si a ter de tomar partido por um milionário branco cis heterossexual que chama nazi a uma imigrante indiana. Espero que estejam melhor da cervical.