O brasileiro não sabe que, se tivesse chegado cá nos anos 80, era rei e senhor. Era o tempo de Portugal fechado em casa ao serão, derretido diante das telenovelas da Globo. Quando alguém do Brasil se dignava a pôr pés aqui, a aclamação era total. Desbravavam o nosso futuro na televisão, na publicidade e a tratar-nos dos dentes. Nas Igrejas Evangélicas, os brasileiros eram missionários e pastores que flutuavam um palmo acima dos restantes mortais, santificados numa religião que não tem santos. Portugal era todo deles. O início dos anos 90 mudou tudo. E geralmente atribui-se essa mudança à Igreja Universal do Reino de Deus.

O brasileiro não sabe que a IURD (como dizemos com desdém) mudou o jogo quando se atreveu a julgar que a liberdade religiosa em Portugal era mesmo liberdade religiosa. As pessoas cultas, que obviamente nunca maltratam ninguém, acorrentaram-se ao Coliseu do Porto para impedir a queda de um símbolo nacional no culto da ignorância sul-americana. Como junto com os pastores da seita vinham prostitutas, mulheres-a-dias e empregados de restaurantes, conseguimos com sucesso desprezar todos os brasileiros sob a aparência de defendermos a cultura portuguesa.

O brasileiro não sabe que os anos 90 (e o início do milénio) foram a glória do mau-trato que lhe demos. O Herman José em prime time misturava no mesmo sotaque pregadores e pegas e o país ria, certíssimo da nossa superioridade. Claro que aqui e ali condescendíamos em continuar a esgotar o Coliseu ao Caetano, em passar luas-de-mel no Nordeste e, até permitir que alguns dos nossos (classe média a atirar para a baixa, claro) casassem com uns quantos deles (sei do que falo porque me recordo de dizer à minha irmã Rute que ela podia casar com quem quisesse, excepto brasileiros). A chegada do Alessandro à Família Cavaco demonstrou a besta que eu era e, nesse sentido, trouxe um tempo novo.

O brasileiro não chega preparado para um mundo que suspeita daquilo que ele idolatra: a alegria. As razões para isto são muitas mas religiosas também. Uma vez escrevi um texto chamado “Os Evangélicos são os Pretos do Cristianismo” (googlem) em que trato do assunto, que agora faz parte de um livro que só está editado no Brasil mas que em breve cá chegará pela FlorCaveira, intitulado “Arame Farpado  no Paraíso—o Brasil visto de fora e um Pastor visto de dentro”. Por exemplo, quanto mais um brasileiro elogia Portugal à sua chegada, menos Portugal o receberá. Como a história da nossa desconfiança lhes é desconhecida, a exuberância que os brasileiros usam naturalmente para se quererem aproximar torna-se o que os manterá para sempre longe, mesmo que entre nós.

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O brasileiro não sabe que, mesmo quando não tem religião, a fé que tem no futuro é-nos blasfema. Em 2010 gravei uma canção chamada “Doutor Soares”, dedicada à tragédia que foi termos Mário Soares como Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa. As vetustas e vigilantes palavras do patrão da nossa democracia diziam que “os protestantes evangélicos são muito fanatizados”, que são senso comum ainda em 2021 para sabermos que esta é a religião que só com muito custo toleraremos, especialmente aos pobres do Sul Global. Portugal tem pouco Deus porque tem pouca gente. O Catolicismo consegue ainda no Século XXI o feito de deter o monopólio da seriedade e todos os outros credos são corridos a banha da cobra. A ironia é que a Esquerda, pouco inclinada a elogiar a Igreja Romana, é hoje o capanga que mais eficazmente expulsa quem queira quebrar a homogeneidade espiritual do nosso santo povo. O Brasil, que é grande para xuxu, muda com facilidade (até de religião) porque o futuro exige, ao passo que nós ainda adoramos o passado.

Mas o que o português não sabe é que o futuro não é, definitivamente, português. Amo o Padre António Vieira mas houve um erro no que ele profetizou: o futuro não é Portugal para o mundo mas o mundo para Portugal. E o mundo futuro que nos dá vida nova é, nesta época, essencialmente o Brasil. Não é preciso alinhar no último acordo ortográfico para entender que a nossa língua é e será maioritariamente a língua dos brasileiros (só lá dentro são mais de 210 milhões de falantes, caramba!). Os evangélicos portugueses não sabem que estão mais à frente do que todos os outros portugueses pelo facto de as nossas comunidades se abrasileirarem há décadas (isto não significa que qualquer abrasileirização é boa mas que é, de facto, inevitável). Os portugueses, notáveis na arte da pedinchice, vão abrindo muito resignadamente os olhos porque descobrem muito surpreendidos os novos brasileiros ricos que escolhem viver cá. Diante do imigrante, o português acredita muito em Portugal até que ele tenha mais money do que nós.

O que eu sei é que maltratar brasileiros só rende enquanto a nossa adoração do passado tiver mais crentes. Eu, que apenas creio na pátria eterna, invisto em qualquer outra que conjugue a nossa língua no futuro.