A ética desde que existe que não se confunde com a autonomia da vontade. A ética exige a transcendência do indivíduo e das suas capacidades individuais. Por exemplo, em Espinoza lemos o esforço em fundamentar e dar sentido à ética, em Deus. Num Deus racional, matemático, lógico. Fundamentar a ética em Deus foi preocupação antiga da civilização onde nos inserimos; até a conseguirmos fundamentar e dar-lhe sentido, sem Deus. Feito este conseguido com Kant que a sintetizou numa regra de ouro que chamou de “imperativo categórico”.
A proposta kantiana realçou que a ética não precisa de ser fundamentada fora do indivíduo, em Deus, por exemplo, ou num elemento exógeno objetivado, como, por exemplo, um conceito como é o da “vida” e em especial “vida humana”.
A proposta kantiana é de encontrar formulações éticas no próprio indivíduo a partir da perspetiva de não ignorar o outro e de ter a empatia de obter deste outro informação que o determina a conformar o seu comportamento ao que concluí dever ser feito por si, enquanto indivíduo, e por qualquer outro indivíduo, naquela exata circunstância e informação.
A ética exige para ser ética. A ética não é apenas fonte de argumentos para suscitar adesão. A ética exige. A ética não apenas convence. A ética exige. Exige, desde logo, que o individuo se transcenda para além da sua materialidade e se situe numa consciência que envolva os seus semelhantes para esse indivíduo poder formular em si um juízo de si próprio, como se fosse visto por um terceiro. Concluindo com um “fizeste o que deveria ser feito por qualquer outro indivíduo naquela circunstância, com aquela informação”, o que por sua vez resulta em lenitivo, ou mesmo na absolvição, para a responsabilização no juízo da sua consciência e na dos demais.
A ética exige. A ética não recomenda. A ética exige que se o indivíduo não pretender condicionamentos próprios à sua autonomia de vontade que então não tenha ética!
A sacralização da autonomia da vontade sem peias nem freios é um sinal e sintoma de algo muito errado numa civilização e do caminho, sentido e direção, da sua “evolução”.
O ser humano que pretenda viver sem ética deve pretender também viver fora da civilização. O que resultaria em ser menos ou mais que um, mas não mais um, ser humano.
Evoluímos para os seres humanos que somos, necessária e intrinsecamente, pela civilização.
É um esforço do ser humano viver em civilização. O ser humano tem e terá sempre a impressão das características e impulsos da sua natureza que a psicanálise a descreve muito bem e que na história da mesma psicanálise vamos encontrar Freud que a dado momento escreve sobre o cinismo que é preciso ter para o indivíduo poder viver mentalmente são em civilização.
É deste esforço de civilização e de controlo da natureza do indivíduo que participa a ética.
A ética impõe. A ética não recomenda.
Há consideração ética na formação de um comportamento se o resultado dessa consideração for para o indivíduo a conclusão de que deve adotar, naquela circunstância, com aquela informação que dispõe, determinado comportamento. Não há ética se a conclusão não for um imperativo para esse indivíduo.
Há ética se essas considerações transcenderem o indivíduo. Não há ética se essas considerações se limitarem ao esclarecimento da vontade do próprio indivíduo ou mesmo, não há ética se não houver consideração nenhuma na formação do comportamento.
Não se legisla a ética, todavia não devemos reconhecer ética em considerações que transcendem o indivíduo, mas que não transcendem a realidade mundana. Devemos reservar o termo ética para as considerações que se fundamentam e encontram sentido para além do indivíduo e dos indivíduos. A essas considerações que transcendem o indivíduo, mas não os indivíduos, devem ser chamadas de económicas.
São as considerações que me suscitam, da confusão em debates que tenho observado a propósito da eutanásia, sobre a ética e autonomia da vontade.
Se a questão é ética, retire-se do debate a autonomia da vontade. A parte da ética que importa à autonomia da vontade é a já pressuposta na ética em si, a respeito do sujeito e da reflexão que o próprio faz ao seu comportamento. A parte que importa para o debate sobre a ética é a parte além da autonomia da vontade. É essa, precisamente essa, e apenas essa, que importa para se poder caracterizar a questão como ética. Ou pelo menos, para que se possa dizer que a ética foi preocupação da discussão.