Não foi na residência oficial de Ricardo Leão que foram encontrados 75 mil euros escondidos em envelopes, livros e caixas de vinho.

Não foi Ricardo Leão quem desperdiçou uma maioria absoluta nem dois anos depois de a ter conquistado e também não foi Ricardo Leão quem liderou um governo maioritário que teve a honrosa distinção de ter tido 13 baixas em 19 meses.

Não foi Ricardo Leão quem terminou um ciclo de oito anos de poder com um desemprego jovem de 20% e um salário médio líquido de 1.090 euros, deixando Portugal como o quinto país com o valor mais baixo da União Europeia. Também não foi Ricardo Leão quem se despediu do poder com mais de dois milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social.

Não foi Ricardo Leão quem deixou o governo com 400 mil processos de imigrantes por regularizar e depois de extinguir como extinguiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras contra os apelos e os avisos de praticamente todos os intervenientes.

Não foi Ricardo Leão quem deixou o poder com a criminalidade violenta a crescer por dois anos consecutivos e a atingir em 2023 o valor mais alto desde 2019, invertendo uma tendência de redução que vinha pelo menos desde 2009.

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Não foi com Ricardo Leão que o parque habitacional público ficou nos 2%, o que compara com 12% da média europeia. E também não foi no governo de Ricardo Leão que se construíram uma média de 15 mil novos fogos para habitação familiar por ano entre 2016 e 2023, que contrastam com uma média de 27 mil (2008 – 2015) ou de 91 mil (2000 – 2007). Isto apesar de o preço médio das casas ter disparado 106% só nos últimos dez anos.

Não foi Ricardo Leão quem se despediu do poder com mais de 1,5 milhões de pessoas sem médico de família (o valor mais baixo desde 2014) e com um aumento considerável do número de utentes à espera da primeira consulta e de cirurgia, com um agravamento do tempo médio de espera dos operados e apenas 53% das consultas realizadas dentro dos tempos máximos de resposta garantidos.

Não foi Ricardo Leão o responsável pelo nível de investimento público de Portugal ter sido apenas 2,1% do PIB por ano ao longo dos últimos dez anos, menos de um terço da média dos 27 Estados-membros do espaço europeu. E também não foi Ricardo Leão quem deixou o cargo com quase 40% dos investimentos do PRR, a tal bazuca que era “uma enorme oportunidade” para o país e que serviu para alimentar toda uma campanha autárquica, em estado “crítico e preocupante”.

Não foi Ricardo Leão quem recebeu um país atolado em megaprocessos, cuja demora na conclusão e comprovada ineficiência lançaram e lançam o descrédito sobre todo o sistema judicial, e que o deixou praticamente na mesma, com a eterna e tão exigida reforma da Justiça esquecida numa gaveta qualquer e uma Procuradora-Geral da República como Lucília Gago no currículo.

Não foi no governo de Ricardo Leão que morreram 114 pessoas em incêndios florestais num único ano. Não foi no governo de Ricardo Leão que desapareceram armas de um paiol em Tancos, que se inventaram aeroportos da noite para o dia, para depois não se construir nenhum, ou que se viram ministros envolvidos em filmes de espiões de terceira categoria.

Não, não foi no governo de Ricardo Leão que se chegaram a contar 30 ligações familiares, envolvendo mais de 40 pessoas, ao ponto de ter sido o próprio governo a reconhecer que talvez fosse preciso regular tamanha endogamia.

Não foi Ricardo Leão quem promoveu a número dois do seu governo o “cão de guarda” de José Sócrates (Augusto Santos Silva), deixando-o depois a fazer alegremente uma pré-campanha presidencial a partir da presidência da Assembleia da República, alimentado(-se) (d)o Chega. Não foi Ricardo Leão quem encaminhou para Bruxelas o braço direito de José Sócrates (Pedro Silva Pereira) com direito a lugar de honra e tudo.

E, quando muitos no PS pediam que se refletisse sobre como José Sócrates conseguiu fazer o que fez instrumentalizando o próprio partido, também não foi Ricardo Leão quem, entre a detenção do antigo primeiro-ministro e o tal momento de clarividência que se exigia, demorou oito anos só para dizer: “[Sócrates], de facto, aldrabou-nos”.

Não foi Ricardo Leão quem governou durante oito anos e se despediu do poder com médicos, enfermeiros, professores, forças de segurança e oficiais de justiça nas ruas, em protesto e em greves, enquanto os hospitais se enchiam, as escolas não tinham aulas, as ruas não tinham polícias suficientes e os tribunais não funcionavam.

Porém, este artigo não serve para defender Ricardo Leão, que disse efetivamente uma alarvidade de todo o tamanho. Também não serve apenas para criticar António Costa, apesar das responsabilidades que teve e de todas as contradições que manifestou nos últimos oito anos — para sermos inteiramente justos, Costa não herdou uma folha em branco, um país sem passado, sem defeitos e sem vícios. No limite, também não serve somente para criticar o PS, apesar de ter governado 21 dos últimos quase 29 anos — também ao PSD devem ser assacadas responsabilidades pelos erros que cometeu enquanto foi poder e pela fragilidade que demonstrou enquanto esteve na oposição.

Este artigo serve outro propósito. Fazer proclamações gongóricas sobre a “honra, os valores, a cultura e a identidade” dos partidos do centro moderado, resolver qualquer debate colando os adversários ao infrequentável, inaceitável e imoral Chega, encontrar um fascista em cada esquina (primeiro foi Passos, depois Rio, Montenegro, Moedas, e agora até Leão…) pode agradar aos novos zelotas cá do burgo, pode ajudar muita boa gente a dormir melhor à noite e pode comover jornalistas, comentadores e muitos impolutos e moralmente incorruptíveis políticos com um glorioso futuro atrás deles. Mas o resultado prático é lamentável e invariavelmente o mesmo: a inconsequência.

A realidade é dura, mas é assim mesmo: enquanto não forem dadas respostas eficazes, sensatas e responsáveis aos problemas concretos das pessoas e do país, o que exige que os partidos debatam temas difíceis, sem tabus, com coragem e maturidade democráticas, forças políticas com características semelhantes às do Chega continuarão a crescer. Porque ocupam vazios e porque se alimentam da inação e dos pecados de quem deveria estar à altura.

Impõe-se, portanto, uma de duas atitudes possíveis: assumir responsabilidades pelos erros do passado e encontrar respostas moderadas e mobilizadoras para devolver esperança e confiança aos eleitores; ou continuar a gritar “não passarão” enquanto se verte uma lágrima pela morte da democracia, se destratam adversários (e camaradas) e se insultam os eleitores dos outros. Mas porque não fazer apenas isto se reconforta os espíritos e anima as claques? Tem corrido tão bem até agora.

Afinal, foi com e imediatamente depois de António Costa, e não com Ricardo Leão, que o Chega passou de zero para 50 deputados. Honra lhe seja feita.