Até agora, incrivelmente, António Costa tinha conseguido manter o controlo total sobre a sua própria sucessão. No Congresso do PS de maio de 2018, Pedro Nuno Santos, com a sua inconfundível tendência para a petulância, atreveu-se a mostrar que tinha muita pressa para vestir o fato, a gravata e os sapatos do líder, mas António Costa resolveu a coisa com uma frase ao mesmo tempo curta, seca, definitiva e paternalista: “Anuncio desde já que não meti os papéis para a reforma”.

De qualquer forma, ficou o aviso de que havia ali um perigo para a unidade do partido. Por isso, depois das últimas eleições, Costa tomou a decisão prudente de pegar no tema da sucessão e transferi-lo da esfera do PS para a mesa do Conselho de Ministros. Com o conforto de uma maioria absoluta, distribuiu pastas pelos quatro putativos candidatos: Pedro Nuno Santos ficou ministro das Infraestruturas, Fernando Medina ficou ministro das Finanças, Mariana Vieira da Silva ficou ministra da Presidência e Ana Catarina Mendes ficou ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares. Este movimento pode ser interpretado de forma bondosa: sabendo que não é eterno, António Costa estava a dar experiência governativa aqueles que poderiam ser seus sucessores, para assim estarem bem preparados para servir a pátria caso os eleitores lhes oferecessem a sua confiança e o seu voto. Mas este movimento também pode ser interpretado de forma cínica: ao tirá-los do partido e colocá-los no governo, António Costa estava a manter os seus potenciais sucessores simultaneamente afastados dos corredores conspirativos do PS, ocupados com tarefas complexas e controlados pelo chicote da obrigatória solidariedade colegial com as decisões do primeiro-ministro.

Ao fazer isto, António Costa criou um cordão sanitário à volta do PS: com os sucessores confortavelmente encaixados no governo, mandava só ele no partido. Mas, agora que Pedro Nuno Santos foi forçado a deixar de ser ministro, tudo mudou — o eixo da sucessão saiu do governo e passou novamente para o PS.

Nisto tudo, há várias certezas. Primeira certeza: quer António Costa queira quer não, no Congresso de 2025 vai ter um adversário determinado e poderoso — acabaram as entronizações com aplausos, flores e cânticos de paz. Segunda certeza: Pedro Nuno Santos já não está obrigado a qualquer solidariedade, genuína ou simulada, com as decisões do primeiro-ministro, ficando livre para o criticar e atacar de acordo com as suas conveniências particulares. Terceira certeza: as tropas partidárias fiéis a Pedro Nuno Santos (que são muitas) vão começar a alinhar-se com aquele que julgam ser o futuro chefe.

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É tudo aquilo que o atual líder do PS sempre quis evitar. Há uma história célebre que costuma ser contada pelo próprio António Costa e que envolve um pacto que fez com José Sócrates. No início do governo de António Guterres, os dois delfins, traumatizados com o sangrento e prolongado processo de sucessão de Mário Soares, juraram que iriam fazer tudo para impedir uma repetição da história: “Quando chegasse a hora da mudança geracional no PS, não permitiríamos que ela demorasse dez anos, enredada em lutas fratricidas como ocorreu com Sampaio e Constâncio e Guterres e Gama”. Cada um deles jurou apoiar aquele que estivesse mais bem colocado na altura decisiva. Para azar do país, o mais bem colocado seria Sócrates — e Costa, como prometido, apoiou-o.

Agora que se aproxima uma nova “mudança geracional”, António Costa gostaria seguramente que o pacto se repetisse. Percebendo que isso era impossível, tentou adiar o mais possível a data do confronto entre os seus sucessores, para conter os danos ao partido. Isto é o mesmo que dizer que tentou manter o poder nas suas próprias mãos durante o máximo de tempo que conseguiu, prolongando uma estudada ambiguidade sobre os seus planos de reforma.

A capacidade de António Costa controlar o ritmo e o volume da sucessão acabou esta semana. Pedro Nuno Santos não lhe deve agora nada: não lhe deve um cargo, não lhe deve apoio, nem lhe deve poder. Pelo contrário: julga-se credor de uma traição e vítima de uma humilhação.

Esta semana, temos andado todos a olhar para o que mudou no governo. Há uma boa razão para isso: de facto, António Costa perdeu um ministro. Mais: perdeu um dos poucos ministros com existência política própria. Mais ainda: perdeu um ministro com uma das pastas mais melindrosas, sensíveis e difíceis do governo. Mas, melhor ou pior, tudo isso se resolve. A mudança para a qual o primeiro-ministro não tem antídoto está noutro lado: no PS, os dias de poder absoluto de António Costa acabaram.