Abalroado, logo na segunda-feira, pela surpresa do regresso de António Costa aos bancos da escola, procuro ainda hoje, envolvido em espanto e emplastros, no mesmo lancil do sinistro, recuperar deste duplo atropelo: em primeiro lugar, a perturbadora descoberta de ele já os ter frequentado, quando, do seu desconhecimento das normas básicas da língua portuguesa, há muito deduzíramos que o pobre coitado, talvez alfabetizado em ensino doméstico, estimulara a oralidade simulando verbalmente os sons produzidos por soldadinhos de chumbo atirados pelas escadas; em segundo, a inopinada comoção que advém de perceber que alguém que investiu os últimos oito anos a disseminar conflitualidade social com médicos, professores, enfermeiros, forças de segurança, funcionários judiciais e com quem quer que se lhe atravessasse não apenas se atira com denodo a uma pós-graduação em Mediação e Arbitragem como, aproveitando o ensejo, o faz numa instituição privada de elite – esmagando de uma assentada o preconceito dos seus antigos parceiros de geringonça relativamente ao rosto humano do tenebroso capitalismo com a sensibilidade social que esta instituição particular demonstrou para com uma potencial vítima de abandono escolar precoce.
Instigado pelo pundonor de outros heroicos retiros (Cícero em Formiae, Herculano em Vale de Lobos, Sócrates na Ericeira), António Costa não podia deixar escapar esta oportunidade de rascunhar epigrama da sua lavra para o busto da praxe, sobre o qual, para a posteridade, pontificará a coroa da humílima busca do conhecimento após anos de desinteressado serviço à coisa pública.
Infelizmente, fieiras de onomatopeias, amálgamas e zeugmas não são ainda suficientes para construir um texto pelo que, nesta sua comédia de enganos, rebites de postiço, erros de concordância e parágrafos mal indentados, em vez de estilo e vanguardismo, denunciam antes despautério e embuste – áreas em que Costa, apesar das inúmeras provas superadas, não deixa de ser bisonho noviço. Se o projecto era trabalhar épicas abaladas e farsa, António Costa devia ter reservado nas estantes de S. Bento mais espaço para as obras de um jovem irlandês do que para as caixas e envelopes de Escária.
Quando questionado sobre o que pretendia fazer depois de terminar os estudos em Oxford, o jovem Oscar Wilde – já conhecido pela sua personalidade extravagante e pelos seus brilhantes feitos enquanto estudante de Clássicas – deixou claro para onde se dirigiam as suas ambições. “Só Deus sabe”, disse. “Serei um poeta, um escritor, um dramaturgo. De uma forma ou de outra, serei famoso e, se não famoso, notável.”
Como sabemos, a sua previsão havia de cumprir-se espetacularmente. Como uma personagem de uma das tragédias gregas que ele traduzia com tanta fluência quando era estudante, a sua brevíssima vida seguiu uma espetacular trajectória da fama à infâmia, daqueles inebriantes triunfos dos seus dias pós-Oxford até à terrível peripeteia dos julgamentos e da prisão.
No clímax da obra-prima cómica de Oscar Wilde, The Importance of being Earnest, descobrimos que um bebé foi confundido com um livro. Até essa revelação improvável, a peça – perversa exploração da artificialidade da moralidade convencional – simula sob divertimento ligeiro uma reflexão intrincada da complexa relação entre aquilo que as coisas realmente são e o como desejamos que elas fossem.
A peça segue dois jovens heróis da moda, Algernon e Jack, enquanto cada um deles leva uma elaborada vida dupla, aperfeiçoada com identidades falsas e amigos imaginários, que lhes permite buscar prazeres censuráveis apresentando um rosto respeitável à respectiva sociedade local: Londres para Algy, cujo fictício amigo inválido, Bunbury, proporciona desculpas frequentes para fugir para o campo; Hertfordshire para Jack, cuja assunção de uma identidade própria falsa (a de um irmão inventado e imprestável chamado Ernest) lhe permite comportamentos condenáveis na cidade.
Essas máscaras artificiais começam a ruir quando os dois homens são vítimas de impulsos naturais. Jack apaixona-se pela prima de Algy, Gwendolen, e Algy pela jovem pupila de Jack, Cecily, durante uma travessa visita à casa de Jack no campo. Os objetivos matrimoniais de Jack, entretanto, veem-se seriamente prejudicados pelo facto de ele não ter pedigree. Como ele revela timidamente durante uma entrevista com a mãe de Gwendolen e tia de Algy, a formidável Lady Bracknell, ele foi descoberto, ainda criança, dentro de uma grande mala no bengaleiro da Victoria Station, e posteriormente adoptado pelo gentil cavalheiro que o encontrou, Mr Worthing.
A forma como o bebé foi parar à mala é revelada nos momentos finais da peça, quando se descobre que Miss Prism, a tutora atualmente contratada por Jack para acompanhar Cecily, era a baby-sitter de serviço da irmã de Lady Bracknell (mãe de Algy) – a mesma que saiu para passear com o irmão mais velho de Algy há vinte e oito anos e que desapareceu juntamente com a criança. Prism descreve a uma audiência chocada o modo como, “num momento de abstração mental”, trocou o bebé a seu cargo pelo manuscrito do romance que estava a escrever, colocando o primeiro na sua bolsa, que guardou no bengaleiro da estação ferroviária, e este último no carrinho, que levou para passear. Ao perceber que havia perdido a criança, Miss Prism fugiu de Londres e nunca mais voltou.
A incapacidade de Miss Prism para distinguir um ser humano de uma obra de ficção pode ter sido o resultado de uma “abstração mental”. Já a propensão de António Costa para tomar a miséria por destino, o compadrio pela amizade, maneiras de casa de pasto por sentido de estado é, para infortúnio nosso, a sua peculiar hermenêutica do propósito das mais nobres virtudes republicanas: repetir a manobra de Heimlich sobre o abdómen do fascismo – real ou imaginário – para, uma vez ressurecto o monstro, poder enfim vestir aquela acetinada fantasia de Príncipe Valente há tanto guardada no sótão e, então sim, resgatar definitivamente a ralé às perigosíssimas garras do progresso, do desenvolvimento e da liberdade.
Wilde, o classicista, sabia que a outra face de Earnest, com o seu bebé perdido e reconhecimentos de última hora entre parentes próximos, era Oedipus Rex. Sem a galharda erudição do jovem irlandês, temo que final Costa terá preparado para a sua opera buffa.