«In my end is my beginning» é o último verso do segundo dos «Quatro Quartetos» desse grande, árduo e fascinante poeta que foi T. S. Elliot. Era também o moto da rainha Mary Stuart da Escócia, e talvez seja uma boa divisa para acompanhar as últimas horas deste ano.

Em todos os inícios nos aguarda a sombra desse estremecimento antigo: as bermas das sendas por trilhar são fascínios que, bem sabemos, a curva seguinte ou o grilhão do hábito se encarregarão de fazer esquecer, domesticar ou justificar. Antes do primeiro passo, antes do primeiro gesto, antes do primeiro amor, contudo, a ingenuidade empurra-nos para a vertigem do ilimitado, ainda que a nossa linguagem, aprisionada no tempo, nos impeça de compreendê-lo: a conjectura, o sonho, o desacerto da paixão, tudo se consome no torvelinho daquela descoberta abrupta e lancinante por onde se escoa a nossa impotência para laçar o real. E é nesse momento que descobrimos a palavra enquanto instrumento dos nossos pequenos lutos.

De acordo com Anaximandro, o arche (o princípio) de todas as coisas residia no apeiron, o não limitado. Dependendo da forma como se entendesse o limite negado naquela palavra composta, o termo poderia ser susceptível de várias interpretações e, na sua Física, Aristóteles discute extensamente acerca dos vários significados da palavra – a infinidade espacial, por exemplo. Mas não há dúvida de que, na sua ideia de apeiron, se inclui a duração no tempo – a infinita provisão de uma substância básica «para que a geração e a destruição não faltem» – e a indeterminação, isto é, a ausência de limites internos dentro dos quais os simples corpos físicos, o ar e a água, não estivessem ainda distintos entre si. É também possível que Anaximandro considerasse esta enorme massa de matéria que rodeia o nosso kosmos como uma esfera, e que, nesse sentido, a interpretasse também sem limite, ou seja, sem qualquer início ou fim.

A linguagem pré-filosófica fora moldada pelo uso comum e pelos vislumbres da transcendência herdados da mitologia. O primeiro desses usos estava marcado evidentemente pela sua predilecção pelo concreto, pelas coisas; no entanto, a juntar-se-lhe, havia também um acervo crescente de termos mais ou menos abstractos provenientes dos sentimentos morais da tradição épica. Díke, time, areté, embora pensáveis em termos puramente materiais, eram já utilizados como abstractos, e a primeira geração de filósofos, sujeita ainda à maioria das convenções poéticas, baseou-se largamente neste vocabulário épico em que o ouro, os carros, a alma (psyche), as lanças, e o espírito (thymós), todos eles eram objectos materiais e passíveis de uma definição bastante precisa. Os aedos intuíam que os limites impostos pela fina linha que a palavra traça em torno do real são justamente aqueles que consentem o seu (re)conhecimento; a fronteira, mais do que uma limitação, era uma possibilidade.

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O advento do cru e desconcertante cepticismo da sofística – não há qualquer ser; se existir, não pode ser conhecido; se pudesse, jamais poderia ser comunicado pela linguagem – revela uma ruptura radical com a filosofia grega anterior uma vez que, desvinculando a linguagem da realidade, impõe uma nova interpretação do homem: se se renunciar à linguagem enquanto expressão do real, ela acaba por converter-se num instrumento de manipulação, numa arma de persuasão das massas.

Antes de Júlio César – tão genial estratega quanto perigosíssimo sofista – ter reformado, com a ajuda de Sosígenes, o calendário, Roma regia-se pelos meses lunares, cujo início coincidia com cada lua nova. No primeiro dia, as calendae, um dos pontífices convocava o povo no Capitólio para o informar das celebrações religiosas daquele mês – os dias fastos, aqueles em que os deuses tudo favoreciam, bem como os nefastos, os de mau agouro. O pontífice elencava, um por um, os dias que transcorreriam até as nonas e, senhor do tempo, convocava os dias a seus pés.

António Costa, dispensando Capitólios, invadiu-nos a Consoada anunciando um novo tempo e convocando, impante, os fastos de que se alimenta a sua desfaçatez. Fá-lo não apenas por despudor mas por saber que a palavra, nas suas mucosas, verte uma gosma de zeugmas: omitiu os milhares de estudantes que, concluído o primeiro período, continuam sem professor a pelo menos uma disciplina; todos aqueles que, sujeitos a Provas Intermédias, alcançaram resultados desastrosos; os tempos de espera nas Urgências disponíveis àquela hora; todas as pessoas que, manietadas por serviços públicos obesos, ineficientes e caprichosos, suportam uma das mais elevadas cargas fiscais da Europa; os dois milhões de cidadãos que vivem em situação de pobreza; os carros calcinados na estrada de Pedrogão e as caixas de vinho no gabinete ao lado; o aumento exponencial de pessoas em situação de sem-abrigo; aquela metade de jovens qualificados que admite emigrar e esta raiva tão mansa e tão familiar por todos os meses nos sobrarem no calendário os dias que esta “austera, apagada e vil tristeza” há tanto os traz nefastos.

Quando o carrasco ergueu à turba a cabeça de Mary Stuart, as tranças ruivas que Isabel I – a rainha que ordenara a sua execução – tanto invejava revelaram-se na verdade uma peruca, e a sua cabeça rolou pelo chão, mostrando que a monarca escocesa usava afinal um cabelo grisalho bem curto e ousadamente masculino. Mal Isabel sabia que, anos mais tarde, seria um filho de Mary a sentar-se no trono inglês.

É porque a linguagem não consegue captar a essência do Tempo que nos devemos a alegria, a esperança e toda a força do paradoxo: «Os homens avançados em idade devem ser exploradores / O lugar e a hora não são importantes (…) No meu fim está o meu princípio.»

Feliz Ano Novo!