Não será preciso um grande esforço, para quase conseguirmos ouvir – pressurosos, esvoaçantes, solícitos – os assessores de imprensa de António Costa adejando os trejeitos e os conselhos (“Não se esqueça das esdrúxulas, António, é com elas que se ganham eleições!”) que mais pudessem convir à gravata azul (Confiança! Estabilidade!), escolhida a dedo para a rábula do serão de Segunda.

Assistir à mais recente entrevista televisiva de António Costa, longe de mais uma estafada oportunidade para confirmar aqueles traços da personagem que o areópago do comentariado toma por qualidades palacianas (o contorcionismo larvar, a ausência de escrúpulo, a miopia moral e intelectual, a dialéctica venal…), revelou-se afinal preciosíssima ocasião para lançar luz sobre o arremedo de sottie em que, desde há oito anos, ele teima em transformar a vida nacional.

Dos escombros dos serviços públicos ao rol de áreas vitais capturadas por interesses corporativos; da debilidade anémica das classes médias à ressurecta pobreza medieval acoitada sob viadutos; do palpitar exangue da democracia à estrutura de um governo minado por seres sinistros, degradantes, suspeitos ou intoleráveis – Costa não teve mais que partilhar do que a enorme “frustração por a realidade ter sido mais dinâmica do que a capacidade de resposta política”: sobrepor à pungente miséria dos seus concidadãos os momentâneos desencantos que afligem o seu ego rotundo e cavo é, mesmo para os padrões de Costa, uma incursão surpreendente por territórios de cruel desumanidade.

A satisfação com que a personagem convive com a mediocridade (relativamente ao SNS, por exemplo, asseverou que “vai funcionando” e, quanto ao início deste ano lectivo, garantiu que até “não foi o pior”) mais do que um compêndio de socialismo, é um preciosíssimo reflexo da forma mentis deste polichinelo de fancaria: enquanto burila os seus gerúndios, eis-nos chegados ao último trimestre de 2023, aquele em que – oh beatitude! – por fim seremos ultrapassados pela Roménia.

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Tendo em conta que o governo da coisa pública consiste justamente na constante busca por um equilíbrio, sempre precário e negociado, entre planificação, ponderação e escolha, a confissão de um genuíno espanto, oito anos após a primeira tomada de posse, por a realidade ser algo de dinâmico e volúvel confirma ou a obtusidade da sua ideia – partindo do princípio de que existe uma – de Política ou o perigoso infantilismo de um mundo em que a realidade, apenas por pirraça, se recusa a aceder aos desejos pessoais que Costa, o Magnífico, privilegiado desde o berço, se habituou a ver satisfeitos.

Inconsciente da riqueza etimológica do desejo (de desiderare, que significa deixar de ver, sentir a ausência de e, por conseguinte, procurar diligentemente) Costa, o Esplêndido, desconhece que todo o desejo implica simultaneamente carência e o consequente esforço para a suplantar. Amputando este último termo à definição, Costa, o Soberbo, limita-se a passear pelos salões, preso à trela do seu capricho, o arbítrio indulgente – uma versão semanticamente rafeira da mais humana das aspirações.

No fundo, o primeiro-ministro, desdobrando-se em poses e afãs, não passa de um Plotino de pechisbeque – enquanto o mestre das Enéadas sublinhava a prioridade do desejo em relação ao pensamento, uma vez que pensar é desejar o Bem e o desejo gera o pensamento, nada satisfaz mais Costa do que o pensamento de um desejo que molde a realidade – uma espécie de wishful thinking para mentecaptos (passe o pleonasmo).

O desejo distingue-se da necessidade, pois, enquanto esta não excede o plano do ter, o desejo projecta-se sobre o domínio do ser. Situado entre os impulsos de que se nutre e a vontade que o orienta, o desejo constitui a fonte primária de qualquer acção – inclusivamente a política – condição necessária para que o homem assuma a responsabilidade pelo seu destino e ouse a construção de um amanhã, pois não há futuro senão para aquele que deseja.

Ora, dizem-nos os manuais (e uma dose pequena de senso comum) que um bom número de desejos insensatos permanece para sempre impedido de qualquer possibilidade de realização: próprio de um desejo impaciente é perder gradualmente a esperança de realização e assumir a sua forma negativa – a angústia – que poderá manifestar-se ora sob formas passivas (culpabilidade, rancor…) ora sob formas activas (ódio, cólera…). Costa, o Magnificente, há muito que se especializou nestas últimas, pelo que, durante a entrevista, imensas foram as situações em que, às perguntas mais incómodas, ameaçou incensar jornalistas com os seus rosnados.

Ora acontece que a realidade consiste em tudo aquilo que existe ou é, por oposição a uma simples aparência, desejo ou projecto. Equivale, portanto, ao ser que, como tal, se impõe e resiste a todas as tentativas de oblívio ou negação. É natural que àqueles que, como fungos, se habituaram a medrar nas cálidas virilhas do socialismo e da mediocridade (passe, uma outra vez, o pleonasmo) incomodem sobremaneira as salubres aragens do real e da liberdade.

Para Costa, o Sumptuoso, o desejo – a seus olhos, indistinguível de um qualquer apetite, conveniência mais primária ou cálculo mais velhaco – será sempre atropelado pela realidade, essa meretriz volúvel e caprichosa cuja brutalidade teima em ignorar ostensivamente (como se atreve?) o bruxuleante cerúleo das suas gravatas e.

No entretanto, qual sombra sinistra, abatem-se sobre nós os sortilégios tartamudos das suas esdrúxulas com que nos vamos exercitando, amestrados e melancólicos, na nobre ciência de viver nesta versão europeia do Burkina Faso.