Durante meses fomos bombardeados com ideia de que a pandemia de Covid-19 criava uma pressão enorme sobre o sistema hospitalar público. Esta ideia, repetida até à exaustão, era sustentada diariamente com notícias e imagens de hospitais sobrecarregados de doentes, alguns em situação caótica. Surgiram múltiplas iniciativas governamentais e não governamentais para responder a esta emergência sanitária. Construíram-se hospitais de campanha, fizeram-se acordos com instituições do sector social (União das Misericórdias) para que o Estado comprasse vagas neste sector para enviar doentes que os hospitais públicos não tinham já condições para albergar, transferiu-se um sem número de doentes (Covid-19 e não Covid-19) de hospitais públicos (que estavam sobrelotados) para hospitais privados, etc.

A única coisa que não se fez foi planear e organizar devidamente, em tempo útil, ou seja, entre abril e agosto de 2020, tal como na altura foi proposto, a resposta do sistema hospitalar, criando uma gestão centralizada e informatizada das camas disponíveis a nível nacional, de modo a, em tempo real, encaminhar doentes das instituições que estivessem sobrelotadas (se, de facto, o estavam e não fosse apenas o caso de não tratarem de se reorganizar internamente de modo a disponibilizar camas existentes e disponíveis de outras especialidades para acolher doentes Covid-19) para instituições com capacidade para os acolher.

Na região de Lisboa e Vale do Tejo, houve administradores hospitalares a falar da diferente “carga de esforço” dos hospitais, ou seja, denunciando que havia hospitais a “rebentar pelas costuras” enquanto outros tinham taxas de ocupação baixas.

Em alguns hospitais, houve dezenas de doentes nos serviços de urgência que esperaram, em condições infra-humanas, às vezes durante todo um fim-de-semana, que lhes fosse atribuída uma cama – apenas no dia útil seguinte, quando as administrações regionais de saúde iniciavam os contactos com diferentes hospitais para encontrar algum que declarasse ter camas disponíveis para acolher esses doentes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Perante este cenário, surpreenderá alguns, mas não os que conhecem e acompanham diariamente o estado do nosso sistema de saúde, que a verdade objetiva, nua e crua dos números revele uma realidade completamente diferente.

O gráfico seguinte, mostrando a evolução das médias mensais das taxas de ocupação dos hospitais públicos portugueses entre janeiro de 2019 e janeiro de 2021, revela (dados de SNS, portal da transparência):

  • Que a taxa de ocupação dos hospitais públicos foi, em 2020, em plena pandemia, significativamente menor do que tinha sido em 2019;
  • Que em pleno pico da pandemia, em janeiro de 2021, a taxa de ocupação dos hospitais públicos foi menor do que nos períodos homólogos de 2019 e 2020;
  • Que, comparando mês a mês, em todos os meses do período pandémico, a taxa de ocupação dos hospitais públicos portugueses foi menor do que em igual período do ano anterior.

Excluíram-se desta análise, por razões óbvias, os hospitais psiquiátricos, os institutos de oncologia e os centros de reabilitação.

A principal explicação para este facto tem a ver com o excecional decréscimo do número de atendimentos nos serviços de urgência, o qual baixou de 6.395.240, em 2019, para 4.601.208, em 2020, uma diminuição de 28%. Outra explicação, é a suspensão da atividade programada que se verificou, até por ordem ministerial, em muitos hospitais.

Os dados apresentados mostram, claramente que, no que concerne à capacidade de internamento hospitalar, o que se verificou em Portugal foi impreparação, falta de planeamento, desorganização. Uma atempada preparação da gestão das vagas hospitalares teria permitido responder mais eficazmente às necessidades de internamento colocadas pela pandemia, teria evitado todas as desnecessárias iniciativas de criação de hospitais de campanha, teria prevenido o caos vivido em alguns hospitais e, igualmente importante, teria garantido que os doentes não Covid-19 não fossem tão prejudicados.

Não tendo os dados objetivos (não os declarados) relacionados com os cuidados intensivos, não é possível analisar este aspeto da maior relevância nesta pandemia. No entanto, nesta área, tudo parece indicar que a capacidade instalada era insuficiente para as necessidades que se vieram a verificar (obviamente não colmatadas pelas ridículas, demagógicas e politicamente motivadas ajudas internacionais).

Realça-se que, para além de tudo o referido, esta desorganização da resposta agravou significativamente a carga de trabalho imposta aos profissionais de saúde (cuja dedicação, abnegação e capacidade de ir além dos limites do humanamente exigível ficaram bem demonstradas), também eles em número exíguo para as necessidades (mesmo no período pré-pandemia).

A frieza dos números demonstra, inequivocamente, que quem revelou que não houve adequado planeamento da resposta hospitalar à pandemia, embora considerado criminoso pela responsável máxima do Ministério da Saúde, disse a verdade.