“Processo de negacionistas. Vão a julgamento todos os arguidos”  — avisava a RTP. Mais completo ainda o portal SAPO detalhava, somava e agitava como quem mexe uma salada: “Covid19. Negacionistas podem ir a tribunal. Maiores restrições diminuíram a mortalidade e um negacionista pode mandar na saúde nos EUA”

De repente aí estão outra vez os negacionistas. Aos mais incautos até parecerá que os negacionistas vão a tribunal por serem negacionistas pois só lá para o fim dos títulos ou quiçá mesmo nas notícias se fica a saber que aquilo que os leva a tribunal não é o que pensam sobre a COVID  (ou será que é sobre as vacinas?) mas sim o facto de terem insultado e tentado agredir Ferro Rodrigues e Gouveia e Melo. Ora como é óbvio é muito diferente ir a tribunal porque se tentou bater em alguém do que por aquilo que se pensa.

Cinco anos depois de termos lido as primeiras  notícias sobre um vírus que estava a provocar um surto de pneumonias em Wuhan, na China, estes bizarros títulos e o uso do termo negacionistas como quem faz um esconjuro vêm lembrar-nos que aquilo que designamos como  combate à COVID 19 foi um dos mais perturbantes acontecimentos vividos pela humanidade. A começar pela sua dimensão planetária que foi além do próprio termo mundial que reservamos para as duas guerras que marcaram o século XX: poucos lugares do mundo terão ficado a salvo dos confinamentos, da obrigatoriedade do uso das máscaras, das ordens e contra ordens sobre o quando, onde e como nos podíamos deslocar, trabalhar, viver.

Mas o mais perturbante e distinto do combate à COVID foi o que nos mostrou sobre nós e sobre o mundo que construímos. O confinamento com a dependência absoluta do estado que implicava e impunha deve ter sido o que de mais próximo estivemos do socialismo ou mais correctamente da autarcia anti-capitalista. Por momentos, sobretudo nos países mais urbanizados, muitos parecem ter acreditado numa vida de atendimentos on line, aulas on line, consultas on line, palmas à janela e momentos virais. As prestações sociais caíam nas contas, seres invisíveis depositavam compras e refeições nas portas e os governantes faziam conferências de imprensa para dar conta do progresso do vírus como se se tratasse dum exército invasor. As fábricas fecharam, as lojas também. Os apóstolos do decrescimento regozijavam com os céus sem aviões, os aeroportos vazios e as ruas desertas: ainda não chega — avisavam quais sibilas que nas andanças do vírus confirmavam a nossa condenação ao seu projecto de fazer de cada um de nós um Robinson Crusoe fechado no seu apartamento. O sanitarismo revelou-se mais potente que o militarismo no momento de mobilizar e condicionar toda a sociedade, porque é mesmo de toda a sociedade que trata e não de alguns grupos.

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Em Portugal, em Março de 2020, os portugueses fecharam-se em casa antes do Governo ter decretado o primeiro confinamento. Mas rapidamente o confinamento tornou-se um modo de fazer política: o tempo em que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa foram verdadeiramente felizes foi essa fase de vida suspensa chamada combate à pandemia.

Quando em 2022 começámos a deixar para trás os estados de alerta e emergência, as máscaras e os testes, o confina-desconfina, o alcool gel e os certificados de circulação, as praias com distanciamento obrigatório, os parques infantis encerrados, o faz de conta do trabalho à distância… não percebemos logo de imediato que voltámos outros. Mas voltámos de facto outros. Talvez mais desconfiados. Certamente mais intolerantes.

Dia a dia vamos agora mais constatando do que percebendo que a forma como vivemos e reagimos aos que nos aconteceu entre 2020 e 2022 criou uma linha de fractura que o tempo tem vindo a acentuar. Em 2024, a  reacção perante os confinamentos, as escolas fechadas ou a vacinação das crianças aquando da pandemia diz mais sobre a atitude política de cada um de nós do que o partido em que votamos. Para alguns em que me incluo, tornou-se também  óbvio que sob o impulso do medo, os povos e quem os governa não só suspendem o seu modo de vida de um momento para o outro como silenciam quem recusa ir nessa onda colectiva. E isto aconteceu agora mesmo no século XXI tal como no passado a que chamamos obscurantista. E no século XXI o jornalismo não só não ficou imune a essa onda como foi parte activa nela.

Por fim mas não por último, a COVID antecipou o que politicamente temos dificuldade em verbalizar: o poder indiscutível da China. Um poder que se percebeu logo no primeiro momento quando se subestimou a origem do vírus num laboratório em Whuan, a perseguição aos médicos e cientistas chineses que alertavam para  o que estava a acontecer ou a subserviência da OMS  perante a China.

Oficialmente a “COVID-19 é uma doença infeciosa provocada pelo vírus SARS-CoV-2, do grupo dos coronavírus, que muitas vezes se manifesta com sintomas de infeção respiratória aguda.” Mas a forma como reagimos à COVID-19 foi muito mais que uma resposta clínica. O SARS-CoV-2 expôs os nossos medos. O medo da doença. O medo de ir contra corrente. O medo de ficar mal na fotografia. O medo da liberdade.