Definir prioridades é uma regra obrigatória na discussão de políticas públicas. Os recursos (dinheiro e tempo) são limitados e, como tal, devem ser investidos onde mais fazem falta. É uma regra de bom-senso que demasiada gente se esquece quando discute as opções políticas do governo ou as propostas partidárias: não há dinheiro para tudo. Ora, com uma inquietante regularidade, a definição de prioridades é feita por conveniência política.

Um bom exemplo disso é o recente debate sobre o fim das propinas no ensino superior, porque reúne os três problemas que sempre surgem quando os interesses políticos se sobrepõem aos factos. Primeiro, a ausência de posições sustentadas em evidências: o governo e o presidente da república sentenciam o fracasso da política de propinas no ensino superior, mas não explicam de onde puxaram esse diagnóstico, uma vez que não há dados que sustentem a relação causa-efeito entre a existência das actuais propinas e uma diminuição da frequência do ensino superior (sem falar do princípio em si ou do papel desempenhado pelas bolsas de acção social). Segundo, a irresponsabilidade financeira: põe-se em causa uma parte substancial do financiamento às instituições de ensino superior (vale mais de 300 milhões de euros anuais) sem ter uma alternativa razoável, porque é efectivamente irrealista conceber que o Orçamento de Estado assuma essa despesa quando, nestes últimos anos, tem estrangulado o financiamento das universidades. Terceiro, estabelece-se politicamente uma prioridade com elevados custos orçamentais, negligenciando áreas onde o país está particularmente atrasado e fragilizado: um exemplo óbvio, aqui recordado pelo Henrique Raposo, é discutir-se a gratuitidade do ensino superior em vez da gratuitidade das creches.

Discutir o acesso gratuito às creches deveria mesmo ser uma prioridade estratégica. Afinal, estamos envelhecidos e em queda demográfica, temos desigualdades sociais profundas que condicionam o acesso de muitas famílias aos cuidados infantis, e vemos as mulheres (e mães) continuarem a ser penalizadas nas suas carreiras profissionais. E, ao contrário do que sucede noutras áreas, existem experiências internacionais que permitem guiar o debate político para soluções que realmente funcionam, justificando o investimento público com benefícios sociais palpáveis.

Um dos casos internacionais mais discutidos e bem-sucedidos é o da província do Quebeque, no Canadá. Em 1996, foi lançada uma política de grande escala para a conciliação e para o financiamento de centros infantis/creches (dos 0 aos 5 anos de idade) de elevada qualidade (públicos e privados) mas com custos baixos para as famílias. Vinte anos depois, os resultados mostram que foi uma aposta ganha por várias razões. Primeiro, maior equidade social: um número muito maior de crianças teve acesso a cuidados de qualidade e ao desenvolvimento de competências sociais desde os primeiros anos, deixando esta de ser uma possibilidade apenas ao alcance das famílias com mais recursos financeiros. Segundo, maior igualdade de género: aumentou a participação das mulheres no mercado de trabalho, na medida em que passaram a ter alternativas viáveis para deixar os filhos – por exemplo, o aumento foi mais significativo nas mulheres abaixo dos 30 anos e aumentou em 20% a participação das mulheres com filhos menores de 3 anos. De tal modo que a província do Quebeque tem hoje as taxas de participação mais elevadas do país (86% em 2017) e ultrapassou também os países escandinavos. Terceiro, promoveu a natalidade: apesar de mais mulheres estarem no mercado de trabalho, a taxa média de fertilidade aumentou e ultrapassou finalmente os níveis da província canadiana de Ontário. Quarto, equilíbrio financeiro: a medida impôs um elevado esforço orçamental, mas o aumento significativo da participação das mulheres no mercado de trabalho permitiu pagar esse investimento em criação de riqueza e impostos – a medida custa cerca de 2 mil milhões de dólares por ano mas, estima-se, o seu impacto positivo no PIB da província ronda os 4 mil milhões de dólares.

É certo que, recentemente, o governo português lançou um programa que visa a promoção da natalidade, o “3 em Linha”. Mas alguém acredita que um programa de 33 medidas e que obriga à pesada articulação entre ministérios, organismos públicos e autarquias tem viabilidade real? Mesmo que bem-intencionado, isto não deixa de soar ao discurso que se está sempre a ouvir, a seguir ao qual nada realmente muda. Anda-se há demasiado tempo a brincar às medidas e a fingir que se faz – para prejuízo real das famílias social e economicamente mais desfavorecidas. Se a indignação dos partidos e das elites fosse canalizada para aí, em vez de contra as propinas no ensino superior, seria um serviço mais valioso para o país.

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