Desconhecemos ainda muito sobre o novo coronavírus. Mas, precisamente por vivermos tempos de incerteza, as decisões devem ser guiadas pela melhor evidência disponível — científica, médica, económica e social. Sobretudo quando essas decisões forem complexas (e quase todas serão, porque é muito difícil reduzir a incerteza nas actuais circunstâncias). A reabertura das creches no próximo dia 18 e dos jardins-de-infância (pré-escolar) em Junho são duas dessas decisões difíceis, mas acertadas. E são acertadas porque, apesar das resistências públicas de que têm sido alvo, as evidências enquadram e justificam essas decisões.

Sabemos que as crianças mais jovens são as que menos riscos de saúde correm se infectadas e também que a sua probabilidade de ficar infectadas é menor do que a dos adultos. Em termos de contágio, era justificada a hipótese de as crianças serem um veículo de transmissão, mas as evidências tendem a rejeitar tais receios — tudo indica que as crianças são menos transmissoras do vírus do que os adultos. Ora, nada disto significa que o risco é inexistente, até porque, enquanto houver pandemia, tal coisa não existirá. Mas as evidências mostram como dificilmente será possível reduzir mais os riscos para a saúde das crianças.

Na dimensão social, o argumento-chave tem sido dito e repetido: manter as crianças em casa é impedir o regresso dos seus pais ao trabalho, muitos deles com situações profissionais precárias e com fontes de rendimento em risco pela crise económica que se instalou. Mas há mais: para muitas crianças em contextos sociais frágeis, a frequência das creches ou dos jardins-de-infância serve igualmente de garantia de alimentação controlada e saudável. Nos anos do programa de ajustamento económico e financeiro (2011-2014), não faltaram relatos de crianças que não tomavam pequeno-almoço por falta de meios ou que, no regresso das aulas, não tinham jantar à sua espera em casa. Infelizmente, essas situações de grande carência social não desapareceram (agora até poderão aumentar) e abrir as instituições que recebem as crianças é uma ajuda essencial a essas famílias.

Acresce que, no plano pedagógico e de desenvolvimento das crianças, prolongar esta ausência de contacto com outras crianças e educadores tem consequências nefastas para o seu crescimento e preparação para a escola. Isso é particularmente evidente no pré-escolar. Existe uma extensa literatura científica acerca do impacto de longo-prazo da frequência do pré-escolar no percurso escolar das crianças e na sua probabilidade de sucesso educativo. A conclusão é (praticamente) consensual: quem frequentar dois ou mais anos de pré-escolar obtém uma vantagem sobre quem frequentar apenas por um ano, e uma vantagem muito acentuada sobre aqueles que não frequentem o pré-escolar. Simplificando, é como se, numa corrida de 100 metros, alguns alunos começassem bastante atrás da linha de partida, em consequência de não terem tido a oportunidade de frequentar o pré-escolar previamente. Ou seja, voltando à situação que hoje vivemos, privar as crianças de frequentar o pré-escolar durante um período alargado (quem sabe como será em Setembro?) será retirar-lhes instrumentos para a obtenção de sucesso. Sobretudo no caso de crianças em contextos sociais desfavorecidos, porque são essas que têm maior risco de insucesso e mais precisam de apoio.

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Não pretendo com isto diminuir ou sugerir que as críticas à reabertura são absurdas, que os receios são descabidos ou que os riscos são inexistentes. Nada disso: os aspectos negativos existem e os receios de educadores e comunidades escolares devem ser tidos em conta. Mas há formas de lidar com eles. Olhando para países europeus que reabriram creches e pré-escolar, a experiência mostra que esses receios são menos justificados do que poderíamos julgar — na Noruega, por exemplo, verificou-se que tal reabertura não esteve associada a qualquer aumento do contágio. No fundo, há que saber colocar os pesos na balança e, na pesagem, as evidências são esmagadoras a favor da reabertura.

Acontece que reabrir é apenas a primeira metade da decisão. A segunda metade é proporcionar meios de abertura, nomeadamente impondo orientações às instituições para que os procedimentos de segurança sejam equilibrados, aderentes à realidade e proporcionais. E, nesse domínio, a DGS não esteve bem, ao ter lançado inicialmente um conjunto de orientações irrealistas, cuja leitura era que só seria possível receber as crianças nas creches se estas se comportassem como adultos — uma irrazoabilidade completa. As orientações ontem publicadas corrigem esse erro inicial e são mais adequadas. Mas, no que separa estas versões das orientações, a mensagem que passou foi a pior possível: a da intranquilidade. As famílias terão ficado com a percepção de que, com o objectivo de abrir as creches, se baixou a fasquia inicial da segurança e se toleraram riscos maiores do que os necessários. Não será bem assim: mais uma vez, os exemplos internacionais mostram como, sem fundamentalismos e até com restrições mais suaves do que as portuguesas, as creches reabriram com sucesso em vários países.

Fica a lição, agora que está para breve a decisão política referente ao pré-escolar. Há razões de saúde, educativas, sociais e económicas para justificar a reabertura. Mas, porque os riscos não desapareceram, o sucesso dessa medida dependerá muito do seu enquadramento: as orientações da DGS não podem cair outra vez no irrealismo que gera medo e desconfiança.