Vivemos em tempos de crise profunda. Os números oficiais não a reflectem. Temo que a contabilidade precisa e irrepreensivelmente fidedigna do INE seja interpretada pela maioria dos Portugueses como uma perversa ficção ao serviço de uma utopia. A expressão “o mapa não é o território” é cada vez mais pertinente. A discrepância entre os números e o que é sentido na pele pelo cidadão-comum é simplesmente abismal.

As mais recentes sondagens evidenciam o que parece ser uma perturbante indiferença dos cidadãos em relação à representação político-partidária. Os partidos moderados não seduzem os Portugueses. Os radicais também não, apesar das crises, reais ou imaginárias, lhes favorecerem. A aparente indiferença dos eleitores moderados e a apatia dos radicais sugere um crescente desinteresse na vida da polis. Preocupante, sem dúvida.

Importa compreender, entre outras coisas, qual será o impacto deste angst dos cidadãos no comportamento das elites políticas. O que farão eles e elas para acirrar os seus eleitorados reais ou potenciais? É possível que radicalizem as suas propostas e posturas, quiçá sucumbindo ao populismo democrático, contribuindo assim para a crescente belicosidade ideológica que, note-se, não se resume à muito propalada “polarização”. Invocarão o pragmatismo reformista moderado (PSD) ou radical (Iniciativa Liberal) como solução mágica para os problemas do país? Ou continuarão a preferir as intermináveis acusações mútuas que descredibilizam todos os partidos políticos sem beneficiar um único Português? A política Portuguesa parece uma eterna e infernal “briga de comadres.” O agonismo político que acompanha o pluralismo radical é talvez o mais venerável atributo da democracia liberal, mas tem de ser frutífero aos olhos dos cidadãos. “Da discussão fez-se luz?” Não, por ora, apenas confusão. Os “brandos costumes” não são uma essência histórica imutável.

Também algo preocupante é a forma como os dados das sondagens são interpretados por alguns apparatchiks partidários e comentadores enviesados. Exemplarmente fieis ao método analítico-científico e agindo de acordo com as suas sensibilidades ideológicas, decompõem meticulosamente a realidade em “variáveis” causais e hierarquizam-nas de acordo com as respostas obtidas. A insatisfação com a performance do governo é uma variável e as relacionadas com o custo de vida, com a corrupção e com a qualidade das lideranças são outras. Esta forma de analisar a política parece elucidativa em virtude da clareza que proporciona, mas padece de uma debilitante maleita: a análise separa o que foi dado pela experiência como um gestalt indecomponível. Expliquemos, recorrendo a uma ilustração meramente especulativa.

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Imaginemos, por exemplo, que fazemos a seguinte pergunta ao cidadão X que respondeu à sondagem: qual é, para si, a principal causa da (sua percepção) da má governação? A corrupção e a incompetência, responde X. Se bem me lembro, a corrupção surge como a terceira maior queixa dos cidadãos que participaram na sondagem da Universidade Católica. Para X, todavia, a corrupção e a incompetência são as principais causa da má governação. Ou seja, a percepção quantitativamente mais significativa encerra duas suposições acerca das suas causas, uma das quais é quantitativamente insignificante, mas certamente relevante. Uma percepção composta por uma suposta constatação e duas presunções de causalidade. A sondagem hierarquiza as preocupações dos Portugueses, mas não explicita as relações (causais etc.) entre aspectos diversos da mais importante percepção. A percepção da má governação não é uma variável independente ou sequer dependente. É, simplesmente, um gestalt formado pela experiência.

Consideremos o que se passou nos últimos meses à luz do argumento que a simultaneidade sintetiza elementos diversos na percepção. Durante algumas semanas, ou meses, a experiência da crise socioeconómica ocorreu simultaneamente com a percepção de corrupção causada pelos “casos e casinhos”, pelo controverso processo TAP, pelas indagações da Comissão de Inquérito Parlamentar e pela quase infindável reapresentação das “narrativas” antagónicas nos debates televisivos etc. A saturação semiótica em grande escala sincroniza aspectos diversos numa mesma narrativa. Podemos isolar analiticamente as percepções e as condições, tratá-las como variáveis independentes ou dependentes, mas a verdade nua e crua é que a experiência, isto é, o testemunho hipermediatizado da realidade política, pode, per si, encarregar-se de estabelecer relações causais entre experiências concretas, crenças e percepções e de as sintetizar em narrativas explicativas coerentes.

Adiante. A percepção da má governação tem um objecto claro, o governo, como é evidente. Todavia, se alargarmos e espectro temporal da vivência do agravamento das condições de vida (governos sucessivos) estamos claramente perante uma percepção sistémica. A da corrupção, por sua vez, raramente é localizada, historicamente tende a ser sistémica, em grande parte porque é comummente sabido que a corrupção é um fenómeno de rede. A percepção de que um procedimento de monitorização parlamentar não foi competentemente levado a cabo por vários actores políticos é decididamente sistémica, por razões óbvias. Além disso, um procedimento de inquérito parlamentar é, per natura, institucional e, por conseguinte, sistémico.

A percepção de que a presente crise tem fundamentalmente que ver com a má performance do governo não é sistémica. Todavia, se a percepção da má governação e a experiência da crise se fizerem acompanhar do pressuposto da corrupção, a metamorfose é certa. A percepção expandir-se-á, contemplando doravante todo o sistema político. O framing das percepções não é determinado apenas pela razão e pela lógica. Também é afectivo. A simultaneidade, reforçada pela saturação mediática que sustenta a ilusão de que somos todos testemunhas in loco dos processos políticos, asseguram a sua implicação mútua.

Este fenómeno de associação é particularmente evidente nos traumas. A experiência estabelece relações que a razão desconhece e não controla. A angústia é uma acusadora injusta. Uma pessoa que sofreu um violente acidente de automóvel enquanto ouvia a décima quarta sonata de piano de Beethoven provavelmente desenvolverá uma irreprimível aversão ao compositor germânico. Irracional e ilógico, sem dúvida, mas certamente compreensível.