Passei a véspera de Natal de 2016 a comprar os presentes em falta. Ao contrário doutros anos, encontrei as lojas cheias de gente apressada a riscar nomes nas listas de presentes.
Fui a um supermercado desses que se alojam em centros comerciais dentro de prédios com vários andares. Tinha perdido a lista de compras que me fora encomendada e, a meio da tarde, estava já sem bateria no telemóvel, o costume; decidi comprar mais ou menos a eito o que julgava faltar para a ceia, como bolos – sonhos e coscoréis –, temperos (ao calhas, anis estrelado, cardamomo, sálvia e uma tal de alfavaca, cujo nome me encantou), latas de atum, sempre úteis para preparar uma salada, e bebidas, muitas, que a noite era santa e um bocado de descontração não faria mal.
Na caixa, cedi a vez a uma mulher certamente para além dos 80 anos, vestida modestamente, que levava na mão um pacote de leite, um de lenços de papel e uma embalagem pequena de bolachas, dessas de água e sal. Sorriu-me sem dentes e logo me contou que ia passar a consoada sozinha, “tenho filhos”, disse, mas não lhe ligam nenhuma, explicou, e eu pensei porque seria, e depois percebi que o jantar da noite de Natal dela ia ser de leite e bolachas; interroguei-me sobre os lenços de papel, até a ver tirar um da embalagem e limpar os olhos, lacrimosos, “tenho filhos”, repetiu, a abanar a cabeça e a exalar um cheiro qualquer a limoneno, certamente sequela de um shampoo barato.
Murmurei umas palavras de (des)conforto, “deixe lá, eles pensam em si”, a sua mão ossuda apertou a minha e senti um aperto no coração, coisa breve e pequena estilo ferroada de vespa. Pensei em dar-lhe uma lata de atum mas receei que levasse a mal esmola tão pequena, e por isso não lhe dei nada, vi-a afastar-se, coxeante, a sobraçar o leite e as bolachas, menu da sua noite de Natal, e perguntei-me quantas velhas de 80 anos passam a consoada sós, talvez com um gato, a sonhar com tempos idos de mesa cheia e a prole inteira junta. E a comer sonhos e coscoréis.
À noite jantámos. Antes ouvi a censura da minha mulher por ter trazido tudo trocado, “escrevi louro e salsa, escrevi bolo de bolacha e “palmiers” pequenos, escrevi acendalhas para a lareira, e tu trazes atum?”; depois, aos presentes, senti a vergonha de me ter esquecido de comprar alguma coisa para o primo António, o primo António é uma instituição familiar, tem 90 anos e a cada pessoa da família alargada oferece sempre sabonetes, de variadas cores e feitios, embrulhados em todo o tipo de papel, um presente mais ou menos útil.
O que são presentes úteis? São as molduras, de que tenho um vasto stock de reserva para quando imprimir as centenas de fotografias espalhadas por telemóveis, computadores e “clouds”; as velas, que de tantas serem (ocupam várias gavetas) às vezes me dão vontade de investir num mosteiro, para o alumiar como antigamente; ou os livros de auto-ajuda (o meu irmão recebeu um com o título “Reaprenda a viver sem as redes sociais”, com que ele se apressou a tirar uma selfie que colocou no facebook). Mas um sabonete bate-os todos. Com a vergonha de me ter esquecido do presente do primo António, fui lavar as mãos com o sabão amarelo e de forte cheiro a limão que ele me ofereceu; terá sido o limão a recordar-me a sensação vaga e triste que a lembrança da mão da mulher do supermercado deixara na minha?
Arrumados os presentes, dormi. E dormia quando um anjo chegou e se instalou aos pés da cama a olhar-me. “Que queres, anjo?”, vi-me a perguntar-lhe, ao que ele respondeu: “venho em missão”. E explicou ter sido enviado para me recompensar pela boa acção que eu hoje quase fizera, ao pensar dar uma lata de atum à velhinha do supermercado. Mas não lhe cheguei a dar, ouvi –me responder-lhe; e ele “conta a intenção” e à mente do eu que assistia ao diálogo veio uma frase qualquer banal sobre inferno e intenções, não disse nada, claro, primeiro porque a conversa não era comigo – ou melhor era, embora não fosse exactamente eu, mas o eu que ali falava com o anjo – e depois porque temia que o ser alado fugisse e ficasse sem saber a sequência da conversa. Calei-me, pois, e afiei os ouvidos.
O anjo explicou-me que estava autorizado a conceder três desejos. O meu eu deitado a dormir arregalou os olhos, percebi que se lhe estavam excitando os lóbulos da imaginação, certamente – ou não me conhecesse eu – já a pensar em vultuosas somas em dinheiro, num iate como o do Ronaldo ou numa viagem por ano a locais exóticos. E apressei-me a intervir, para desespero do meu eu deitado:
“Quero que não haja mais velhos sozinhos e com fome na noite de Natal” e o anjo, sem sequer hesitar, com um gesto de mão que mais parecia desenhar um emoji ???? , disse “concedido”. O meu eu deitado fez um som de revolta mas eu, aproveitando a embalagem, fui mais longe: “Quero que acabem as guerras e não haja mais crianças e mulheres a sofrer por elas, como em Alepo” e o anjo outra vez, um gesto e hop, concedido! E antes que o meu eu deitado saísse da prostração e pedisse alguma coisa vilmente material, dei a machadada final: “E quero um planeta limpo de poluição, sem aquecimento global, onde as 4 estações cheguem e partam na altura certa, como nos tempos antigos, uma Terra bela, percorrida pelos animais de outrora em planícies e pradarias de novo verdejantes”. O anjo olhou-me com um ar entre o intrigado e o divertido, hesitou antes de fazer o habitual gesto da mão, mas acabou por dizer, em voz baixa “concedido”. O meu eu deitado desatou numa choradeira, inconsolável.
“Queres ver o Mundo que pediste?”, perguntou o anjo. As suas palavras saíram irónicas quando disse: “queres ver o Mundo limpo e novo, sem guerras e onde os velhos não morrem de fome no Natal”? E a rir-se, “o Mundo que desejaste?”. Anuí com um gesto de cabeça. As imagens do Mundo maravilhoso que desejara começaram a desfilar na minha cabeça. Florestas, planícies, oceanos limpos e belos como os de antigo. Nem sinal de guerras, visto do espaço o planeta parecia mais azul que nunca; imagens continuaram a desfilar e eram elefantes, rinocerontes em grupos sem fim, gorilas na foz de um rio, e até manadas de dodos, baleias em cardumes a vogar os mares, golfinhos nas enseadas, pássaros, flamingos e famílias de águias a cruzar os céus despoluídos do meu Mundo mágico. Belo.
Só que… “e as pessoas, anjo, onde estão as pessoas?”. A voz dele soou então numa improvável combinação entre o sarcástico e o divertido, enquanto na cama o meu eu deitado agonizava: “querias acabar as guerras e a fome, querias um planeta belo e povoado por todas as espécies animais, e ainda querias o humano no meio disso?”. Riu-se, as brancas penas enegrecidas e concluiu: “De intenções está o inferno cheio, homem, mas são apenas pílulas para anestesiar a consciência, que é um peso que o ser humano sustenta com dificuldade”, e já a desaparecer: “vim dizer-te, ó ser que dormes, que ainda é tempo, mas tens de acordar”.
E com um grito final, que se confundiu com os sons natalícios, foi-se.
PS. Este conto não é para ser levado a sério, sobretudo por quem se leva a sério. Não apresenta soluções – e antecipo uma crítica habitual – porque já as conhecemos e achamos que não temos poder para mudar nada, esquecendo a força que tem o exemplo. Mas deu-me prazer escrevê-lo – não tenho outra desculpa – e se um só leitor o apreciar, sentir-me-ei feliz pelo privilégio de ter podido colocar um sorriso na cara, ou na alma, de alguém. E de, talvez, só talvez, poder contribuir para acordar as consciências anestesiadas. Acresce, e permitam-me que acresça, que neste tempo e neste ano em que tantos artistas nos deixaram, devíamos prestar mais atenção à música e às palavras com que nos dizem, com que nos cantam, há tantos anos: “Acordem”.
Bom ano novo para todos!