Aeroporto Internacional de Denver, Colorado (EUA) — Termino esta série de crónicas como comecei: em Denver, com um nevão a ameaçar os meus planos de viagem, e o corpo moído a exigir catorze horas de sono ininterrupto.
Alterei os meus voos de regresso para descansar um pouco mais antes da travessia de sete horas pelas Montanhas Rochosas. Desta feita, de dia e sem tempestade, mas ainda assim não é uma estrada fácil.
Mas, na costa leste outra tempestade está a fazer das suas, com um efeito de dominó a causar milhares de cancelamentos. Portanto, ficará o caro leitor com sem saber se chego a casa ou se não… em jeito de cliffhanger para encorajar a sequela.
Mas voltemos atrás. A partida da MDRS foi, como tive ocasião de referir, sem cerimónias. Nem houve discursos, nem despedidas. Eu carreguei o carro, enfiei-me no meu cantinho na fila de trás, e quando acordei, o Robert Turner já nos estava a fazer atravessar a fronteira estatal com o Colorado. Minutos depois, a topografia do deserto transforma-se, com as falésias vermelhas e ocres cada vez mais íngremes e recortando o céu azul bebé. Pinheirinhos alpinos de um verde-profundo aparecem primeiro aqui e ali, e de repente pululam. A neve adiciona uma quinta cor à paisagem.
Assim que chegamos a Grand Junction, a gangue larga-me numa clínica com a comandante Robinson, para o teste PCR que me permitirá a reentrada no Canadá.
Enquanto espero, conversamos sobre os últimos dias, e num momento muito pessoal, diz-me que tinha sido um enorme prazer partilhar estas semanas comigo, que me achava incrível (duh!) e que esperava que ficássemos amigos daqui para a frente. O sentimento é mútuo, e é o que lhe digo. Sei instintivamente que eu e a comandante seremos amigos e exploradores até ao fim dos nossos dias.
O meu teste é negativo, claro. Mas quando o carro regressa para nos recolher, faço cara de caso e aproximo-me da janela, de máscara, sem entrar. “Tenho más notícias… o meu teste deu positivo, e querem que faça outro. Recomendam que vocês se testem também…”. Faço uma pausa dramática digna de um Óscar, enquanto encaro os olhos esbugalhados e apreensivos da tripulação. Mas não aguento sem rir, causando um respiro de alívio coletivo. A Kay dá-me uma palmada na mão. (Neste preciso momento, a minha mãe está a ler este artigo e a pensar “este meu filho…”).
Enquanto esperamos pela hora do check-in, fazemos uma breve paragem para almoço no Applebee’s, um clássico pedaço de Americana que fascina os meus companheiros europeus novatos nestas coisas da América.
Não tem grande interesse, mas pedi um bacon cheeseburger bem esturricado, porém cor-de-rosa no centro, e uma India Pale Ale que me soube a ginjas. Olho à minha volta, e vejo a Kay agarrada a um cocktail cor-de-rosa, a comandante e a Aga com cervejas, o Roberto com um milk-shake de chocolate, e o Simon com um ice tea. Ninguém fala durante o almoço. Já dizia a minha avó: “Ovelha que berra, perde o bocado” [ditado do Marão].
O Turner e eu depositamos o pessoal no Grand Vista Hotel, a nossa base em Grand Junction, e vamos entregar o veículo num hotel próximo, onde a tripulação seguinte o irá recolher essa mesma tarde. Verificamos a condição do calhambeque e entramos na receção, onde o Robert pretende encetar uma conversa demasiado detalhada sobre a dita. A rececionista não está para isso e rapidamente pega num post-it amarelo que cola à chave do carro com a palavra “MARS” [Marte] escrita a vermelho. À saída, afago a cabeça da simpática mastiff belga juvenil que por ali anda, de uma cor negra luzidia, e arrasto o Robert comigo. Estou com vontade de dormir.
No hotel, o pessoal não perde tempo a fazer três coisas: ajustar a temperatura a seu gosto, tomar banhos luxuosos de dez minutos e dormir uma soneca em lençóis brancos limpinhos, agarrados a quatro almofadas de penas de ganso. Digo isto de ouvir dizer. A mim, para não variar, não me tocou um minuto de sono, já que tinha duas crónicas a mandar ao Observador. Vida de repórter.
Ainda mal nos separámos, mas a síndrome de abstinência do grupo já se manifesta: no agora reativado grupo de WhatsApp sucedem-se mensagens engraçadíssimas sobre o ímpeto que todos sentimos de não deitar papel higiénico na sanita e as palpitações que nos afligem quando deixamos a torneira correr durante 10 segundos seguidos — quase sentindo o olhar fulminante do Simon nas nossas costas. Na realidade, fomos tão eficientes com a gestão dos nossos recursos na MDRS, que dos 550 galões de água (2,500 litros) destinados ao consumo doméstico, deixámos 124 galões (469 litros). A última tripulação precisou de reabastecimento.
Gastámos em média pouco mais de 19 litros de água por pessoa, por dia, ou seja, menos de um sexto do gasto doméstico médio em Portugal, que é de cerca de 124 litros por pessoa, por dia. Também fomos comedidos na Internet (apesar das comunicações por Braided) e em tudo o mais.
Essa noite encontrámo-nos no bar do hotel à hora de jantar na MDRS: 7:30 em ponto. Força do hábito. O bar é o retrato da América profunda. Cowboys por todo o lado, famílias de mineiros que viajaram 150 km para vir aqui jantar e cantar country no karaoke, e um bando de raparigas que acreditam serem as queen bees (abelhas-rainhas) lá do sítio.
À medida que a noite avança, o fascínio pelo nosso grupo aumenta, e várias pessoas se aproximam para perguntar de forma mais ou menos prolongada sobre todos os nossos sotaques — pergunta complicada para mim e para a Aga — e o que nos trás ao Colorado — pergunta complicada para todos. Ninguém responde isto: “Estivemos duas semanas no deserto, como astronautas numa simulação de Marte”. Não sabemos o que dizer.
Depois do jantar, e três cervejas adentro, a Aga regista-se (como Agnes) para cantar “Rocket Man”, de Elton John… ou John, Elton, segundo diz o livro de canções disponíveis. Dá um show com direito a trejeitos de perna, e trejeitos de voz, e uma presença em palco digna do American Idol. Guardou a surpresa final para o fim e o nosso grupo grita entusiasticamente. Ainda canta “Under Pressure”, dos Queen, um pouco mais tarde.
E de repente passa da meia-noite e já ninguém aguenta. Dou um grande abraço de despedida à Kay, que me chama coelhinho Duracell. Mas, depois de mudar os meus voos, ainda os vejo de novo ao pequeno-almoço, onde tenho a oportunidade de traduzir em voz alta o último artigo de fundo do Observador, publicado hoje mesmo.
Simular vida em Marte: as emergências, o labirinto e as cianobactérias de estimação
A Kay, sentada ao meu lado, comove-se na parte que se refere ao labirinto para o qual todos contribuímos e aprecia a perspetiva externa que combina todas as nossas experiências numa só peça. Quando termino, tem os olhos cheios de lágrimas. Dou-lhe um último abraço, e faço a ronda pelos demais, e finalmente parto para Denver.
O nosso lema, “Through all hardship, tomorrow to Mars, but the Earth Always” (“Apesar das dificuldades, amanhã para Marte, mas a Terra sempre”) acaba por ressoar de forma evidente na conexão real que criámos uns com os outros: passámos por todas as provações juntos, de forma produtiva, e com o olho no alvo: Marte. Mas, no fim de contas, somos seres terrestres. Tirando a Kay e talvez a Aga, nenhum de nós embarcaria no primeiro voo para Marte.
A caminho de Denver, pelos canyons adentro e pelas montanhas acima (e abaixo), fui ouvindo os últimos capítulos de Marte Verde, o livro final na Trilogia de Marte do Kim Stanley Robinson, e encaixando mentalmente a tripulação 238 nos arquétipos dos personagens destes livros icónicos.
Faço uma curta pausa em Vail para almoçar, e depois em Dillon para me abastecer de cafeína, coisa que já aqui deixei sobejamente patente ser um combustível essencial. A lua está cheia, e as montanhas, sem grande fausto, não podiam ser mais soberbas.
Mando umas duas ou três fotos a familiares e amigos, com quem não tenho qualquer contacto desde dia 2 de janeiro. As respostas a esta surpresa não se fazem esperar: “Então!? Vais ser astronauta!???” e “Isto é tão típico teu”. Está visto que esta gente não lê o Observador.
Entrevista. O aventureiro português que vai simular a vida em Marte
Ao responder com detalhes sobre esta minha recente aventura, não consigo evitar que se me ocorra aquela cena do Eng. Howard Wolowitz na sitcom “The Big Bang Theory”. Na quinta temporada da série, um dos mecanismos narrativos centrais é o recrutamento acidental de Wolowitz pela NASA para uma missão relativamente curta na Estação Espacial Internacional (ISS), onde chega no episódio #111 (#24 da temporada).
No regresso à Terra, o engenheiro — que tem um notório complexo de inferioridade por não ter um doutoramento como os seus amigos — trás ao peito o prestigioso (e raro) título de astronauta. Daí em diante, e até que os amigos e a namorada o proíbam de mencionar o tema, começa todas as frases com “Quando eu estava na ISS”, ou “Quando eu era astronauta”.
Tem sorte o leitor que o Observador me vai cortar o cordão já daqui a uns dias — depois da minha reflexão final sobre a missão. Se não, ninguém me calava!
PS – Chega-me por WhatsApp a notícia muito relevante do primo do Simon em Grand Junction: o primo Don — que não é perito mas diz que alegadamente conhece a fauna local — viu as fotos da Alice e declarou-a não um desert pocket mouse (ratinho-do-deserto), mas antes um pack rat (neotoma). Ou talvez um pack of rats (um bando de ratos). Acrescenta ainda, como que vingando o escândalo da comandante, que o bicho enorme que ela alega ter visto — e que apelidou de Fátima, vá-se lá saber
porquê — deverá ter sido um cão-da-pradaria, bicho que “se mete em todo o lado”. Pronto. Ficamos assim.