De 2 a 15 de janeiro, o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, vai contar-nos diariamente o que se passa: desde o início da viagem, a partir do Canadá, até ao dia em que derem a experiência por completa.
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Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Por todo o mundo, existem talvez uma dúzia de estações análogas permanentes, e várias outras que são parte de projetos temporários, cada uma com objetivos distintos. Por exemplo, na Mars 500, um estudo multinacional conduzido na Rússia há praticamente uma década, testaram-se variações psicológicas e comportamentais da tripulação, que confessou ter tido cinco vezes mais conflitos com o controlo de missão do que entre si. As conversas por walkie-talkie e as falhas de comunicação não são ideais.

Parte do problema reside no paradoxo da personalidade descrito por Suedfeld e Steel. Por um lado, “a maioria dos voluntários para algo tão desafiante e pouco usual como o espaço, os habitats submarinos, e o trabalho polar, registam valores no topo de todas as escalas de busca de aventura, excitação, novidade”, dizem. Por outro, prosseguem, “estes voluntários também tendem a registar valores elevados na necessidade controlo e autonomia pessoais”, algo que contrasta com a vida rotineira, repetitiva, regrada e pouco autónoma de uma estação de investigação científica.

Na Mars-500, o estudo concluiu com a necessidade de criação de laços afetivos entre as duas equipas antes de uma missão. E aqui estamos, portanto, sem tais laços, a fumegar todos os dias devido à arbitrariedade e inconsistência de muitas das ordens que nos são passadas, e cientes de que, numa situação real, em menos de duas semanas estaríamos ao rubro, e prestes a declarar a independência de Marte.

Uma ótima achega que a Cmdte. Robinson partilhou comigo ao pequeno-almoço, indicando precisamente o paradoxo em que nos encontrámos nesta estação no decorrer da última semana.

Kay na estufa

Kay Sandor, a responsável da estufa, com as suas plantas — PJ Marcellino

O estudo de Suedfeld e Steel indica também a necessidade de criação de laços afetivos, conexão e empatia através da manutenção dos contatos possíveis com os nossos entes queridos, e talvez também através da inclusão de outros seres vivos nas viagens interplanetárias de longa-duração — sejam eles pequenos mamíferos, plantas, fungos ou, no caso da nossa artista e cientista Aga Prokywka, bactérias e cianobactérias. Daí que, como ela nos explicava ontem, nos tenhamos (quase) todos afeiçoado de forma surpreendentemente rápida à querida Alice, o ratinho-do-deserto que nos tem visitado… e agora, às cianobactérias. Mas já lá vamos.

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Desenho da Alice

Um desenho da Alice, o rato-do-deserto que tentou viver na estação, mas que acabou no meio da poeira de “Marte” — PJ Marcellino

Não surpreende, portanto, que a visita do jornalista do The Guardian USA, J. Oliver Conroy, tenha sido tão antecipada. As visitas da imprensa são normalmente planeadas à ordem de uma por missão e articuladas pelas relações públicas da Mars Society. Normalmente, o jornalista seria trazido à estação pela equipa administrativa, mas desta vez não foi assim.

O Oliver chegou a pé, sozinho, tendo estacionado o carro — por motivos que nos ultrapassam — num canyon qualquer a sul da estação, e batido à porta da nossa airlock. Não registámos a presença dele até depois do pequeno-almoço, quando o nosso engenheiro ia a caminho da oficina RAM.

Passaria uma hora até o controlo terrestre nos comunicar que não sabia onde estava a jornalista, porque ainda não o tinha conseguido contactar. Confirmámos que o tínhamos e que estávamos a alimentar bem, até porque para “soylent green” precisamos de matéria prima bem alimentada. Este tipo de humor de Marte/do deserto/de isolamento prosseguiu durante horas, até que decidimos parar com as piadas sobre o último jornalista que tínhamos comido.

Refeição e conversa na estação MDRS

Conversa entre a tripulação e o jornalista acompanhada de café e comida desidratada — PJ Marcellino

Na realidade, estávamos esfomeados por um contacto humano fora do nosso grupo em circuito fechado, e aqui estava uma pessoa interessante e interessada, fazendo perguntas pertinentes sobre cada um de nós, sobre a missão, sobre as nossas motivações pessoais e filosofias — em
linha com o trabalho que também eu estou a fazer — sobre a pesquisa espacial e sobre Marte, sobre os preceitos sociais que as rodeiam… tomando café e comendo a nossa deliciosa comida desidratada, passando umas horas em tertúlia, visitando cada canto da estação como audiência-de-um, cativo mas curioso sobre o funcionamento de cada pedaço. Como rezam as tradições beduínas daquele outro deserto na Terra, recebemo-lo como se fosse um de nós, e despedimo-nos com água para a viagem.

Ainda teve a oportunidade de testar o Oculus Quest 2, o nosso sistema de Realidade Virtual que é parte do estudo que os nossos parceiros da Stardust Technologies estão a realizar, testando e propondo soluções tecnológicas para a saúde mental e o bem-estar dos astronautas em viagens de longo-curso. O visitante teve ainda a sorte de lhe tocar uma das ações de emergência do Simon, que temos andado a temer há uma semana. Começou ontem, e salvámos a Aga durante um resgate em EVA, mas a ventilação do meu fato parou de funcionar devidamente, e em termos de simulação, penso que morri. Mas já me reanimaram, por decisão unânime.

Equipamento de realidade virtual

J. Oliver Conroy teve a oportunidade de testar o Oculus Quest 2, o sistema de Realidade Virtual que é parte do estudo com os parceiros da Stardust Technologies — PJ Marcellino

Era já noite de domingo quando decidimos fazer pizza de massa lêveda (viva, portanto) com lactobacilos que — diz a lenda — foram aparentemente encontrados por uma amiga da Aga no fundo de um pote de uma avó finlandesa em 1900-e-troca-o-passo, e desde então passados de geração em geração. Adicionando um molho de tomate e mozzarella desidratados e os poucos vegetais frescos que nos restavam, e voilà: pizza!

Mas também uma conversa sobre os “animais de estimação” da Aga, isto é, as culturas de fermento e bactérias comestíveis espalhadas pela cozinha e pela estufa. Ou seja, o pretexto ideal para ela nos presentear com um tubinho das nossas próprias espirulinas para que delas tomássemos conta durante 72 horas, da forma que entendêssemos.

Oferta de tubos de espirulina

Durante 72 horas, cada elemento da tripulação terá de tratar das suas espirulinas (cianobactérias dentro dos tubos) da forma que quiser. Depois, vai comê-las (talvez!) — PJ Marcellino

A espirulina da Aga foi baptizada de ‘Eye’; a da Kay, Zsuzkika; a do Robert, ‘Green Slime’; a do Simon, Silent Green; o Borg é a entidade coletiva da comandante Robinson, que já se refere a si mesma como assimilada; a minha responde a pronomes coletivos e nomes mutáveis: Asimov, Aldos, Orwell, Stanley, Efremov, Steinmüller, Huxley.

Diz-nos a Aga que as comeremos daqui a 72 horas, mas não sei se poderei digerir bactérias de estimação.