De 2 a 15 de janeiro, o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, vai contar-nos diariamente o que se passa: desde o início da viagem, a partir do Canadá, até ao dia em que derem a experiência por completa.
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Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — A primeira noite na estação não foi completamente sem sobressaltos. Depois da saída da última tripulação e da desinfeção e encerramento total do espaço por 24 horas (uma medida extraordinária durante a pandemia), e depois do primeiro módulo de treino — sobre os sistemas de suporte de vida da MDRS (Mars Desert Research Station) — deveríamos ter tido um momento para desfazer as malas e descansar.

Viagem de rover na MDRS durante o treino

Saída de rover (em treino) pelo terreno que faz parte da missão, escolhido por permitir simular Marte — PJ Marcellino

Mas a verdade é que o pó de Marte não perdoa, e não se preocupa nem com medidas de isolamento nem com os cansaços alheios. No espaço de horas, uma fina película de grãos vermelhos microscópicos cobria já todas as superfícies do habitáculo, e se é verdade que a poeira não causa grande consternação no piso de baixo, onde só se passam coisas técnicas e onde mantemos as botas poeirentas, no piso habitacional não é ideal. Eu, habituado aos desertos, já sei que o pó cobre lençóis e destrói tanto narizes como computadores. Em suma, uma maratona de limpeza, prenúncio do que nos espera todos os dias. A mesa onde escrevo agora é a mãe de todos os pós.

Mochilas que simulam o peso das que os astronautas usam na realidade

As mochilas que simulam o peso das botijas de oxigénio que os astronautas teriam de suportar num local onde não houvesse uma atmosfera respirável (como tem a Terra) — PJ Marcellino

A exaustão do grupo no domingo (Sol 0) era generalizada, pelo que todos, ou quase todos, se deitaram cedo, e nem os quartos estreitíssimos e quentíssimos, nem aparelhos ruidosos nos puderam manter acordados. Na manhã de segunda-feira — na Terra, Sol 1 em Marte —, segundo dia de treino, tomámos o pequeno-almoço à luz dourada do primeiro amanhecer marciano, que entrou de forma deslumbrante pela escotilha do habitat assim que o sol se ergueu no horizonte. Ainda fora de simulação, mas não é difícil esquecer-me disso.

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Na nossa sessão matutina experimentámos pela primeira vez os fatos espaciais de exterior — que não são pressurizados porque a MDRS não tem como objetivo de investigação o comportamento deste equipamento (para isso, existe outra estação, na Universidade do Dakota do Norte). Aqui, os focos principais são a fidelidade simulativa dos sistemas de vida, e a verossimilhança geográfica do local, escolhido há 20 anos por ser tão análogo a Marte. Por isso, os nossos fatos foram desenhados para simular o peso do equipamento e as distâncias possíveis com um tanque de oxigénio.

Simon Werner, o engenheiro, com o fato de exterior vestido

Todos os elementos da tripulação experimentaram os equipamentos de exterior. Aqui, Simon Werner, o engenheiro da missão — PJ Marcellino

Ninguém precisa de nos dizer duas vezes: com o capacete colocado, perdemos a noção de profundidade — e damos logo umas cabeçadas —, mas também nos sentimos muito desconfortáveis se a circulação de ar não estiver ligada. Seria impossível permanecer no exterior sem um sistema viável, e por conseguinte, sem quebrar a simulação. Com uma carga de 60%, o regresso imediato à estação é obrigatório.

De tarde, saímos nos rovers Polaris para lhes apanhar o jeito, mas sem fatos de EVA [atividade extraveicular]. Uma coisa de cada vez. Temos cinco rovers: o Sojourner (“Nina”), que é usado pela diretora da estação de controlo; o Perseverance (Percy), que está em reparações; e os Spirit, Curiosity (“Cury”) e Opportunity (Oppey), estacionados em frente ao habitáculo de engenharia. Conduzi o Oppey até Galileo Road.

Libertação da Alice

A libertação de Alice, o rato que a tripulação encontrou a viver no habitáculo logo no primeiro dia — PJ Marcellino

À medida que nos distanciamos, é impossível não responder com um sorriso à espetacularidade da paisagem e aos visitantes curiosos que aparecem de quando em vez, trazendo-nos de volta à Terra. Ontem houve três, muito cedo, contaram-nos. No regresso da nossa incursão, vimos ao longe o rover da diretora perseguir um jipe de turistas. Mais tarde, quando fomos libertar a pobre Alice (a nossa clandestina da espécie Chaetodipus penicillatus, um roedor do sudoeste dos EUA), o mesmo jipe estava já escondido dentro da área restrita, fugindo a alta velocidade assim que me viu.

MDRS 238. Tripulantes já estão a bordo, mas só depois dos testes começa a simulação de uma missão em Marte

O dia já se fazia longo, mas terminámos os nossos testes às 10 da noite, passando com distinção (97%). Mais do que suficiente para sermos uma tripulação viável, algo que é, aparentemente, função da nossa média de idades — aos 43, sou o segundo mais jovem — e diversidade técnico-profissional.

Assim sendo, recebemos a luz verde para avançar, e acordaremos terça-feira em Marte… e já em simulação.