Foi divulgado há dias um estudo científico sobre o padrão de doenças que nos afectarão no futuro – “The escalating global burden of serious health-related suffering: projections to 2060 by world regions, age groups, and health conditions”, – realizado por uma reputada equipa internacional, que integra duas investigadoras do nosso país.
O dito estudo tem como objetivo projetar a nível global e até 2060, por regiões do mundo, grupos etários e condições de saúde, a carga de sofrimento grave relacionado com problemas de saúde que possam ser crónicos e irreversíveis e, por isso mesmo, requererem cuidados de saúde a eles dirigidos, os cuidados paliativos. O que se fez foi combinar projeções de mortalidade da OMS (2016-2060) com estimativas de prevalência de sintomas físicos e psicológicos em 20 condições de saúde. Concluiu-se que a carga de sofrimento grave relacionado com problemas de saúde irá quase duplicar até 2060, com subidas mais rápidas em países com baixo rendimento, entre idosos e em pessoas com demência. Falamos de mais de 45 milhões de pessoas em todo o planeta com patologias como o cancro, a demência, o AVC ou as insuficiências de orgão.
Esta é a primeira projeção mundial devidamente estruturada conhecida sobre a carga de sofrimento que é elegível para prestação de cuidados paliativos. Traça um quadro muito preocupante sobre o futuro dos cidadãos e dos cuidados de saúde em diversas regiões, incluindo Portugal, com um aumento exponencial da carga de doença crónica, da morbimortalidade e das necessidades paliativas das populações.
Sem entrar em detalhes científicos mais minuciosos, vale a pena aqui sumariamente revisitar, pela sua relevância e implicações, os principais resultados e os alertas associados, e fazer a propósito algumas reflexões, com propostas imprescindíveis de mudança para o futuro.
Este estudo aponta para a necessidade imediata de um plano de acção consertada e consistente, que promova a integração efectiva dos cuidados paliativos nos sistemas de saúde, como um direito, como imperativo humanista, científico, ético e económico e como forma de não deixar em sofrimento evitável milhões de pessoas. Os dados publicados são claramente um sinal de alerta sobre um futuro próximo que, se entretanto nada fizermos, se antevê problemático e doloroso. Estamos, no entanto, muito a tempo de tomar medidas e de inverter essa fatalidade.
Enquanto colectivo que somos, e atendendo aos diferentes níveis de responsabilidade que cada um nele possa ter, estes dados exigem de todos acção imediata mas também projectada para os próximos tempos. Não poderemos fazer como a avestruz, nem esperar que, a cobro de medos atávicos em torno da discussão da inevitabilidade da nossa finitude, “a coisa não seja bem assim”, ou fazer de conta que não vimos os alertas.
Desde logo, os alertas do aumento do sofrimento associado a doenças exigem dos responsáveis executivos uma resposta inequívoca de investimento público em cuidados em fim de vida, reiteradamente negligenciada nos últimos tempos, e particularmente nos orçamentos anuais para a saúde. Exigem visão e coragem, exigem planeamento e alocação de recursos humanos específicos, devidamente preparados e em número adequado. A magnitude do problema e do desafio que temos pela frente reforça a necessidade de integração entre sector público, social, e privado, e a premência de oferecer um apoio consistente ao cuidador informal.
Exige-se claramente uma especial prioridade ao reforço de respostas na comunidade, vindas quer dos cuidados de saúde primários, quer dos cuidados hospitalares, da saúde e de apoio social, com particular enfoque para a inevitável coordenação e integração dos vários níveis de cuidados e das múltiplas soluções envolvidas.
Exige-se uma mudança de paradigma nas respostas hospitalares oferecidas aos doentes crónicos com pluripatologia, insistindo nós na premência de se fazerem avaliações e abordagens globais, com intervenções clínicas proporcionadas, em oposição a uma abordagem ainda tão frequente, centrada no modelo de ataque à doença aguda e altamente interventiva.
Exige-se uma gestão dos cuidados de saúde com base no valor gerado pelas intervenções, seja para os doentes, seja para as instituições e para o próprio sistema. E com essas premissas, teremos certamente cuidados de saúde mais humanizados e mais eficientes, em que os doentes são tratados de acordo com as suas necessidades e com custos reduzidos face ao padrão actual.
Exige-se formação específica, rigorosa e distinta para todos os profissionais de saúde, no âmbito das doenças crónicas, da geriatria e dos cuidados paliativos, formação centrada na pessoa doente e não nas doenças, formação que capacite para o tratamento, o cuidar e a prioridade ao conforto.
E é também à própria sociedade, conhecedora de toda esta informação e com base na nossa responsabilidade social e numa visão realista do futuro, que se pede que venha a exigir a mudança atempada aos decisores e as medidas descritas, tendentes ao incremento das respostas de cuidados paliativos.
Tem-se falado muito da consciência ecológica, o que é bom, mas será imprescindível lembrar que ela começa na forma como tratamos do próprio Homem, da forma como garantimos um futuro melhor para todos, nomeadamente para os mais vulneráveis. Uma sociedade será moderna e avançada quanto melhor cuidar dos seus elementos mais frágeis e em sofrimento, quanto melhor respeitar a Dignidade de cada ser humano e a inviolabilidade da sua vida, independentemente da sua condição. Dissémo-lo há um ano atrás quando fizemos o debate sobre a eutanásia, dissémo-lo quando propusemos e aprovámos a lei de bases dos cuidados paliativos, a lei do testamento vital, a lei dos direitos das pessoas doentes e em fim de vida (Lei 31/2018), e vamos continuar a sublinhar que a resposta para os que estão doentes e em fim de vida passa pelo acesso alargado e em tempo os cuidados paliativos. Só existe sofrimento intolerável se as pessoas não forem cuidadas e devidamente tratadas.
Fica o alerta deste verdadeiro tsunami para a saúde e para a sociedade, ficam propostas concretas para o evitar e resolver. Saibamos todos avançar com coragem e visão, promover mais e melhores cuidados paliativos, e exigir aos decisores e responsáveis políticos uma resposta cabal e efectiva. Faremos seguramente a Diferença.
Médica de Cuidados Paliativos; Deputada CDS-PP