1. A palavra “cultura”está doente. É mal usada. É abusada. Parece por vezes propriedade privada de alguns, num circuito rarefeito de capelinhas, tribos, castas, famílias (donos?). Brandida como um“direito”, uma “obrigação de apoio estatal”, um descarnado “contrato”, impede o cuidado com que questões que mereceriam uma séria atenção dos poderes se vão esfarelando ou reduzindo a estéril gritaria. Desde uma fiscalidade inadequada (e logo injusta por não ter em conta o lado aleatório da vida artística, as flutuações do mercado, a irregularidade das condições de trabalho, etc.) à actual Lei do Mecenato pouco incentivadora, passando pela “atenção” quase só eleitoral que os governos prestam à “cultura”, usando-a em proveito próprio, o quadro não é feliz: não serve a uns e envergonha os outros.
2. Não serve desde logo a relevância que a palavra — ou melhor, o seu significado — deveria representar Palavra “mágica” chamou-lhe há dias o filósofo José Gil num jornal. Tem razão, tanto cabe num mesmo sopro: génio, criação, beleza, arte, história, mistério, sensibilidade, gosto, júbilo. Arrebatamento. Antecipar o prazer curioso e vibrante de entrar num museu, a surpresa diante de uma obra de arquitectura ou o deleite de ouvir Bach será muito provavelmente tido como demasiado prosaico pelos manuseadores oficiais da “cultura” face ao modo como a definem, exigem ou praticam. Para poucos será um ganho, ainda menos um dom.
Na linguagem corrente do nosso singular eco-sistema social será um “direito”, ponto final. (E continuará a ser, enquanto o uso da extraordinária balança que pesa direitos e deveres, não for retirada do mercado nacional.) A quem ocorre por exemplo que uma cidadania séria pressupõe “deveres” para com um património cultural colectivo? Algumas horas de voluntariado num museu, numa biblioteca, ou gastas a agilizar determinadas tarefas culturais, são gestos ainda vistos como responsabilidades exclusivas do Estado. Não são, mas era preciso que a tal balança caísse em desuso de vez (nada o indica).
3. O tema ocorreu-me por recentemente, num encadeado de felizes acasos a que a minha profissão me conduziu, ter testemunhado exemplos de cultura (sem aspas) cuja relevância nacional pode envaidecer o país. E mais: não passaram pela peneira dos “direitos”, não proveem de “capelas”, não foram “exigidos”, dispensaram o ruído, não conheceram a controvérsia ociosa. Aconteceram simplesmente, mas o seu brilho merece notícia. A primeira delas, assinada no feminino, tem uma matriz estatal mas muito depressa voou mais alto. Voou para o melhor que a cultura portuguesa tem e que a cultura portuguesa dá, mercê do saber fazer de uma mulher voluntariosa; a segunda notícia relembra o fulgor criativo de um grande, grande, artista plástico. Se ouvirem falar por estes dias de Manuela Júdice ou de Jorge Martins, lembrar-se-ão destas notas.
4. Manuela Júdice foi convidada há cerca de um ano pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros e pelo então titular da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, para comissariar uma embaixada cultural portuguesa à Feira do Livro de Guadalajara, onde Portugal é este ano o país convidado de honra. Feiras há muitas, girando como um carrossel por países e continentes mas esta — a segunda maior do mundo e a maior da América Latina — tem pergaminhos e reputação. Merece a “montra” que o país lá envia. Mas, nesta história, atrevo-me a dizer que se deve mais a Manuela Júdice que ao Estado, a tutelas ou poderes: deve-se-lhe o talento e o critério das boas escolhas, a capacidade de decisão, o trabalho e o pulso (e algum mau feitio, felizmente) no modo com interagiu com a natureza civilizacional e cultural dos dois países. Manuela planeou, organizou e (a natureza feminina no seu melhor) executou dentro do prazo e abaixo do orçamento. Vai pôr o México a ouvir Portugal, levando consigo uma representação portuguesa de considerável qualidade académica, científica, literária, artística, musical. Cultura vivida. Feiras são feiras, dir-me-ão. Luzes efémeras sobre montras avulsas, mas se algumas sementes portuguesas vierem a brotar em solo mexicano (a defesa da língua portuguesa, por exemplo). Manuela terá alguma coisa a ver com isso. Não é apostar pouco.
5. O pintor e as suas circunstâncias têm por vezes arredado, do comum dos mortais, o espantoso desenhador que Jorge Martins também é.
Uma dupla qualidade, tela e papel, que tratando-se dele, exibe um grau superlativo de talento. Algo que em absoluto nos incapacita de escolher entre dois sopros de inspiração (e ainda bem que nunca conheceremos a obrigação de tão desnecessário exercício).
Mas agora foi o “desenhador” que voltou. Está aqui mesmo ao lado, em Badajoz, no Museu Extremeño Iberoamericano de Arte Contemporânea (MEIAC), onde portugueses e espanhóis voltaram a descobrir que “o desenho é um dos mais poderosos instrumentos de análise do real”, Jorge Martins dixit. O artista não se limitou a ir às gavetas ou a deambular pelo atelier à procura de trabalhos: desenhou, redesenhou, procurou, reviu a matéria, revendo-se a si mesmo, desenhador/pintor. Levou a sério o desafio (e eis o que é um dos seus mais esclarecedores ex-libris, fazer tudo a sério, obra e vida, como uma espécie de assinatura.)
“Quando desenho é como se estivesse a fazer poesia e matemática ao mesmo tempo”, diz ele, desenhando também certezas intensas sobre si mesmo: “tal como Hamlet numa casca de noz, com um lápis e um papel posso sentir-me o rei dos espaços infinitos”
Não foram apenas os “espaços infinitos” que lhe sorriram, os deuses também, ao pôr-lhe no caminho o jovem e credenciado Oscar Alonso Molina, escolhido pelo MEIAC para curador da exposição. Oscar é de Madrid, foi professor de Estética, agora só faz curadoria — “adoro ocupar-me da arte dos outros”.
Um extasiado curador: “Há tantos mundos no desenho de Martins que parece surpreendente que se concentrem num único autor: há desenhos que quase resultam da dança e da performance, outros que provêm de encontros cultos com a arte do passado”, dizia-me ele quase num sussuro, observando o público do museu. Uma mancha de gente que parecia levitar de sala em sala, olhando do fundo de si mesma, uma e outra vez, os desenhos ali expostos. Oscar Alonso revi-os por palavras suas: “A sua combinação tão fresca, tão desinibida de figuração/abstração, geometria/gesto, lirismo/expressão, por exemplo, anuncia desde há muitas décadas o que as jovens gerações assumem hoje com total naturalidade.”
A verdade é que nunca é facilmente explicável o fulgurante impacto visual do traço de Jorge Martins sobre o papel. Quando se entra na amplidão branca das três salas do Museu hesita-se entre várias (e subjectivíssimas) “impressões” e eis o que só os que são capazes de interpelar, são também capazes de provocar: essa valsa lenta entre o puro espanto, a constatação de um sopro quase divino sobre a mão do desenhador, o encantatório traço cinza-negro dessa mão. Outros saberão melhor que eu “interpretar” o ponto de chegada da mão ao nosso presente estético e ao que ela dá a ver. Por mim, basta-me a devoção que sempre tive activa face a Jorge Martins.
“O desenho de Jorge Martins ocupa-se de questões transcendentes sem nunca recorrer ao pedantismo. Tudo parece muito ‘posto por ordem’, como se as coisas tivessem chegada a esse estado sem sombra de esforço. Mas quando o espectador olha atentamente as obras, apercebe-se que estão cheias de sabedoria plástica, de ‘truques’ leves, de um inacreditável sentido da composição” diz ainda Oscar Alonso, correndo sobre a sua própria rendição a um desenhador que não conhecia.
Voltado para trás, à saída da exposição, o curador, olhando distraidamente a plateia de gente com quem se ia cruzando, oferece-me a chave do que acabáramos de ver:“acho que a luz, o tempo e a linguagem são os grandes assuntos do desenho de Jorge Martins. Mas sabe, tudo isto que lhe tenho vindo a dizer me parece secundário… O que mais me deslumbrou durante estes meses de preparação da exposição de Badajoz foi a enorme vitalidade do Jorge, a sua qualidade humana. Tenho-o já como um amigo mas talvez, quem sabe, estarei delirando… El dibujo me ha emborrachado”?
6. Felizes os acasos profissionais que me conduziram a Cultura tão vivida.