Há 30 anos que a China se move das ideias económicas de Karl Marx para as de Adam Smith, convergindo lentamente com os países desenvolvidos. É esta mudança que permite o elevado crescimento económico, e é este crescimento que mantém “colados” os dois sistemas, o económico, que é relativamente livre, e o político, que é totalitário. A esperança em que a China se torne finalmente na sociedade livre e aberta que defendia Smith reside agora nas gerações mais jovens.
A China de Deng Xiaoping percebeu, nos anos 1980 e com base na experiência de Singapura, que a abertura ao exterior era o caminho para o desenvolvimento económico. Esta opção foi uma inovação nos 4 mil anos de história daquele país e está hoje bem caracterizada na famosa expressão de Deng sobre as mudanças económicas na China, “um país, dois sistemas”, que representou uma mudança radical face aos trágicos falhanços das políticas marxistas de Mao Zedong.
A evolução cautelosa da China de Karl Marx para Adam Smith é visível nos três fatores que o autor escocês apresentou para explicar o desenvolvimento económico.
O primeiro é a valorização do interesse do individuo. Como Smith afirmou, «não é à benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que devemos o nosso jantar, mas à consideração do seu próprio interesse», i.e., à necessidade de ele, e da sua família, poderem viver condignamente.
Esta ideia verteu-se inicialmente na economia chinesa com o alargamento da posse da terra e o acesso dos privados, nas zonas rurais, aos lucros da sua exploração. Como referiu uma professora chinesa num seminário em Pequim, as comunas agrícolas acabaram porque não incentivavam a produção, “as pessoas não eram donas da terra logo não tinham incentivo para trabalhar, eram preguiçosas. O lucro deu-lhes essa motivação”.
As famílias rurais recebem agora terra para cultivar por 50 anos através de um contrato com o Estado e podem vender a sua produção no mercado. Esta reforma agrária aumentou a produtividade ao incentivar o lucro privado e permite urbanizar as zonas rurais, provendo-as dos serviços essenciais.
O fim das comunas e a abertura da agricultura à iniciativa privada com a atração de investimento por uma política de terra barata foi, e é, o principal meio de combate à pobreza nas zonas rurais (que ainda afeta 55% da população) e de estancar o êxodo para as cidades (mais de 200 milhões de pessoas nas últimas décadas).
Esta mudança está a reduzir a pobreza a que o marxismo votou a população rural. A apregoada igualdade traduziu-se na inexistência de estado social nas zonas rurais da China, sem acesso a médicos, a educação ou a qualquer sistema de proteção social. Por isso, e para que a população rural em idade avançada pudesse assegurar a sobrevivência, a política oficial de um só filho foi geralmente ignorada.
O segundo fator de desenvolvimento foi o estabelecimento de direitos de propriedade que assegurem que o retorno do investimento e do trabalho não é expropriado por vontade arbitrária do Estado. Foram o reforço destes direitos e os incentivos dados para que o interesse individual se sobrepusesse ao coletivo que levaram ao elevado crescimento económico da China nos últimos 30 anos.
A legalização de empresas privadas chinesas e a posterior abertura ao investimento estrangeiro, a liberalização parcial dos preços, ou a criação de zonas económicas especiais, reforçadas pela transição de Hong Kong, são exemplos de medidas que implementaram os direitos de propriedade e incentivaram o interesse próprio.
Estas medidas foram reforçadas por políticas fiscais favoráveis, como isenção de impostos alfandegários nas importações ou taxas favoráveis por 3 a 5 anos para atrair investimento e aproveitar a vantagem comparativa em mão-de-obra e fomentar as exportações.
A terceira “força” do desenvolvimento económico de Smith é a divisão do trabalho, em que a maior especialização leva a mais produtividade e melhor afetação dos escassos recursos disponíveis.
Esta preocupação apenas se faz sentir timidamente na economia chinesa, principalmente nas empresas públicas. Um relatório recente, por exemplo, propôs o encerramento de milhares de postos de correio existentes em excesso por indiciar desperdício de recursos.
Mas a grande quantidade de mão-de-obra disponível na China não só afeta negativamente os salários no resto do Mundo como previne uma maior racionalização na aplicação dos recursos. Isto acontece mesmo com despedimentos nas empresas públicas, que não são possíveis em Portugal.
Mudanças como o investimento em países ocidentais, o funcionamento da bolsa ou a entrada da moeda para o cabaz do FMI mostram que o caminho proposto por Adam Smith está a ser percorrido. Mas a incerteza nas respostas das autoridades demonstra também que o país ainda está a aprender a lidar com a economia de mercado.
Esta evolução foi positiva mas é limitada, confirmando que Marx ainda é um economista muito relevante na China. A abordagem pragmática de Deng em que “não interessa se o gato é branco ou preto, o que interessa é que cace os ratos”, que reflete a lógica, muito atual, de que os meios não interessam, apenas os fins, demonstra que as ideias marxistas predominam na economia chinesa.
Na realidade, são as ideias dos seus seguidores, que teorizaram sobre o funcionamento de uma economia socialista, uma vez que Marx pouco disse sobre o assunto. Por exemplo, Marx nunca defendeu que todas as empresas deveriam ser públicas, tendo apresentado apenas medidas genéricas como a estatização dos transportes e da banca, ou a progressividades dos sistemas de impostos.
A economia chinesa é actualmente constituída por empresas públicas, mistas e privadas, representando estas, segundo as estatísticas chinesas, cerca de 80% do emprego. Mas continua a predominar a abordagem colectivista, mesmo quando disfarçada de empresa privada.
O desenvolvimento económico assenta ainda em planos de orientação quinquenais (13º plano para 2016-2021), mas em que agora são apenas referidos os princípios a seguir. Os objetivos quantificados, que os ministérios transformavam em quotas de produção, que as autoridades regionais distribuíam por unidades produtivas públicas, e que eram sempre atingidos no papel, já não existem.
A explicação dada por um empresário sobre as políticas para o futebol demonstram como a economia é centralizada: “o presidente chinês jogava futebol e por isso o Governo está a investir no desenvolvimento deste desporto”. Este empresário privado tenta aproveitar os apoios públicos dados pelo Governo para promover clubes e jogadores europeus na China.
As empresas públicas e mistas, símbolo da promiscuidade entre o sistema político e o sistema económico, estão no centro de dois dos principais problemas da sociedade chinesa, a corrupção e os custos ambientais. A demonstrá-lo está o facto de os milionários chineses serem membros do partido comunista e estarem nas cúpulas do poder.
Mas o principal problema na China é comum a todos os países comunistas: a falta de liberdade e de democracia. Pelo que, o que torna particularmente interessante o caso da China não é apenas a sua dimensão económica. É a forma como a máxima “um país, dois sistemas” se vai aplicar no futuro. Os próprios chineses afirmam que estão ainda no primeiro estágio do socialismo, mas não sabem esclarecer quais e como serão os estágios seguintes.
A população está dividida entre os mais velhos, alienados pelo comunismo e que aceitam o que o partido lhes imponha, e os jovens, cada vez mais ocidentalizados e que mostram ânsia de liberdade e de consumo de produtos do capitalismo.
Estes dois mundos estão mais “colados” pelo crescimento económico do que pelo Partido Comunista Chinês. Pelo que será muito importante perceber como é que estes jovens irão reagir quando o crescimento desaparecer e o dinheiro começar a faltar. Quando isso acontecer o que é que irá prevalecer? A sociedade livre de Smith ou a sociedade alienada de Marx?
Economista