Todos conhecemos a história bíblica de David e Golias. David, um humilde pastor israelita, que, usando como única arma uma funda, enfrentou o gigante filisteu, assim derrotando os filisteus num único combate. Homens da ciência política e gurus de escolas de gestão  têm ao longo dos tempos vindo a tirar lições morais desta batalha épica e a concluir que: não é o tamanho que importa, há-que acreditar que tudo é possível e não subestimar as nossas capacidades.

Talvez os mais de oito milhões de membros do WallStreetBets, uma comunidade na plataforma Reddit, tenham decorado bem essas lições e as tenham tido em conta quando decidiram declarar guerra a alguns grandes fundos com estratégias de investimento agressivas (hedge funds) que vendiam a descoberto ações de empresas como a da GameStock e da American Media Corporation, empresas essas que já tinham vivido dias melhores.

Antes que perca alguns leitores, que não serão versados em vendas a descoberto (short-selling), vamos por partes. Em primeiro lugar, o que é shorting? É um conceito mais simples e intuitivo que parece – um investidor experiente como um hedge fund identifica uma empresa vulnerável. Decide então contrair por empréstimo ações dessa empresa (mediante comissão) a um corretor, vende-as no mercado e compra-as de volta posteriormente por um preço muito mais baixo para as devolver ao credor. A escala desta intervenção faz com que o valor das ações desça muito mais rapidamente do que aconteceria ao ritmo normal. O investidor, ao vender as ações com o mercado em alta, tendo-as comprado em baixa, embolsa um ganho financeiro considerável.

A GameStop constituiu um dos alvos preferenciais dos membros de WallStreetBets. Tratava-se de uma empresa de videogames em dificuldades, cujo valor das ações era de cerca de apenas alguns dólares em 2020. No entanto, em janeiro de 2021, a cotação das suas ações atingiu um pico de pouco mais de 480 dólares americanos, que representava uma valorização da empresa em bolsa superior ao  valor de capitalização de algumas empresas que integram o índice S&P 500. Mas, como é possível que uma empresa, por muitos considerada moribunda, se veja envolvida numa luta titânica entre Wall Street e investidores de retalho?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Milhões de seguidores do WallStreetBets, comunidade direccionada ao aconselhamento sobre compra e venda de ações, foram capazes de comunicar entre si e coordenar um ataque conjunto aos hedge funds que estavam a vender a descoberto. A aplicação Robinhood, por sua vez, forneceu a infraestrutura digital crucial para executar esse ataque. Esta plataforma corretora online, que não cobra comissões, permite a pequenos investidores a possibilidade de comprarem ações de empresas por pequenas quantias em dinheiro a partir dos seus telefones. O cenário estava instalado para um ataque a Wall Street.

A WallStreetBets traçou publicamente um plano no fórum para incentivar os seus seguidores a comprarem ações e opções de compra da GameStop, com o intuito de aumentar exponencialmente o seu valor, flanqueando a estratégia de “shorting” dos hedge funds, criando um aperto (short squeeze).

A Melvin Capital – um dos hedge funds em questão – sofreu com este “aperto” e perdeu 2,75 biliões de dólares americanos tendo mesmo de ser financeiramente apoiada (leia-se adquirida); enquanto isso, três dos maiores acionistas da empresa de videogames GameStop ganhavam mais de 2 biliões de dólares. A cobertura dada ao caso pela comunicação social atraiu ainda mais investidores para a compra de ações da GameStop. Teria chegado finalmente o momento de glória dos pequenos investidores? Estaríamos na presença de mais uma encenação da cena bíblica de David e Golias em que os pequenos investidores viam finalmente a oportunidade de se vingarem de um sistema financeiro manipulado a favor dos ricos e poderosos?

Como todas as boas sagas, a história não acabou aqui. No momento em que escrevo, as ações da GameStop já desceram para 63 dólares americanos, eliminando muito dos ganhos obtidos pela maioria dos que apostaram contra os vendedores a descoberto que não tinham vendido as suas ações.

Como pode isto ter acontecido, e, mais importante, o que é que isto nos diz?

O como foi já parcialmente respondido. A tecnologia democratizou os investimentos. Aplicações de corretores online como a Robinhood permitem que qualquer pessoa que tenha acesso a um telefone móvel se possa tornar num investidor. Plataformas de redes sociais, como a Reddit e outras, permitem que milhões de pequenos investidores comuniquem entre si e que consolidem o seu poder de compra.

Não podemos falar de uma causa única que tenha estado na origem desta rebelião de degenerados profanos e irreverentes – nas palavras deles, não nas minhas – liderada por alguém que responde pelo nome de DeepF—ingValue1. Talvez alguns desses “degenerados” tenham sido motivados pela raiva e pela frustração de nunca ter visto o sistema financeiro ser devidamente responsabilizado pelo desastre financeiro de 2007/8. Outros limitaram-se a especular. Forçados aos confinamentos sociais e com o dinheiro das medidas de estímulo ao combate à pandemia nas mãos, constataram que tinham o tempo e os meios para jogar.

Bem mais interessante é tentar perceber o que tudo isto significa. Não há dúvida de que as coisas mudaram. As redes sociais e as corretoras gratuitas não apenas democratizaram os investimentos no mercado de ações, mas também abriram as portas à criação de  “flash mobs” que ditassem o valor de uma empresa em apenas algumas horas. Vieram ainda permitir que outros titãs de Wall Street conhecessem antemão os planos de milhares de investidores.

Como informação é poder, e na sequência deste movimento que provocou um aumento das ações  extraordinário em bolsa, os titãs de Wall Street reagiram, implementando estratégias de venda massivas de ações que tinham em stock, realizando deste modo mais valias extraordinárias.  Não é de admirar que tenha sido uma outra conhecida empresa de gestão de activos, a Citadel Securities, a injetar dinheiro/comprar a Melvin Capital.

Pois bem, diria que dificilmente estamos na presença de uma habitual cena de David contra Golias, é mais como se estivéssemos perante uma cena bíblica reescrita que opõe Golias a Golias.

Estas “flash mobs” podem ser perigosas, contribuindo para uma volatilidade extraordinária dos mercados de ações e aumentando o valor de uma empresa muito para além do seu “justo valor”. Para aqueles que acreditam que o objetivo do mercado de ações é o de alocar capital para negócios produtivos, isto é motivo de preocupação. As bolhas especulativas poder-se-ão tornar mais comuns, levando a uma má alocação de capital. Tudo isto levanta questões complicadas sobre a eficiência dos mercados, a regulamentação e a estabilidade financeira. A senadora Elizabeth Warren, uma das mais ferozes críticas da especulação de mercado, veio agora apelar para a necessidade de uma maior regulamentação.

Outros, eu inclusive, vêem o mercado de ações mais como um lugar de criação de riqueza para os membros privilegiados da sociedade e menos como uma forma de canalizar dinheiro para investimentos produtivos. Especulação e casino capitalism, temo dizer, são o negócio do costume e existem desde que haja mercados financeiros. O que mudou foi a possibilidade alcançada pelos pequenos investidores de também terem acesso.

Em ambos os casos, o divórcio entre as avaliações de mercado e os fundamentais económicos das empresas não durará para sempre. No fim de contas, todas as bolhas acabam por rebentar e esta, em particular, acabou por revelar-se ser de curta duração. No momento em que escrevo, as ações da GameStop voltaram a cair drasticamente, uma queda de mais de 400 dólares numa semana.

Será que testemunhamos neste momento uma revolução financeira russa, em que o proletariado financeiro começa a erguer-se para mudar a ordem financeira estabelecida? Eu duvido muito disso. A maior parte das revoluções são lideradas por elites, que desejam ver-se a si mesmas no poder. Embora o caso GameStoptenha sido descrito como uma espécie de revolta populista das massas contra a “ganância” dos atores tradicionais de Wall Street, foi liderado por alguns investidores astutos dispostos a sacrificar investidores menos experientes (as massas) para realizar mais valias. Outros hedge funds e fundos de investimento, com grande oportunismo, “surfaram” na onde do movimento de subida de preço das ações, vendendo estas posteriormente em alta.

Aquilo a que assistimos é a internet a ser utilizada como um instrumento de gangue contra o establishment. No futuro, os grandes terão de vigiar as redes sociais e usá-las-ão para manipular ainda mais o mercado, em vez de serem vítimas dele. Mas, o caso GameStop deu início a uma nova tendência. O acesso dos pequenos investidores aos mercados financeiros veio para ficar e a dinâmica das redes sociais veio permitir-lhes que reúnam as suas forças como nunca antes visto.

Esta é apenas mais uma situação em que as redes sociais incitam a uma revolução, permitindo coordenar as ações de milhões de pessoas. A Primavera Árabe, a comemorar agora o seu 10º aniversário, é apenas um exemplo: mais recentemente tivemos o movimento dos coletes-amarelos em França, as manifestações contra o autoritarismo chinês em Hong Kong, o assalto ao Capitólio nos Estados Unidos, os exemplos são muitos. Não é, pois, de espantar que estados autoritários fechem a internet e as plataformas das redes sociais assim que uma qualquer manifestação começa.

Contudo, esta “revolução” atingiu agora o mundo financeiro. Foi de curta duração e não terminou na melhor forma para os investidores de retalho. Sem o potencial financeiro e conhecimento dos mercados destes fundos, milhões de pequenos investidores, seduzidos por ganhos rápidos ou por um certo idealismo revolucionário, têm uma maior tendência para vir a perder. Os mercados financeiros, ao contrário do mundo político não se coaduna muito com idealismos. Se a sua intenção de investimento foi apenas para demonstrar quem tem poder, saiu-lhes o tiro pela culatra e a foram apanhados sem calções de banho quando a maré baixou.

Há muitos que ainda não se esqueceram, ou perdoaram, o que aconteceu em 2008, quando milhões perderam os seus empregos e as suas casas. Os “Millenials” agora armados com o conhecimento tecnológico para além de maior literacia financeira, estão bastantes mais disponíveis para participar no jogo financeiro. Não admitirão ser silenciados e anseiam por uma fatia maior do bolo.

Na agitação do caso GameStop, David não venceu Golias. Pode tê-lo ferido. Certamente chamou para si a atenção, mas não se tornou no rei reinante como na história bíblica. Afinal, nesta história tivemos Golias contra Golias, tendo-se David limitado a participar no acto de abertura.

Versão em inglês.