A eutanásia foi aprovada, na generalidade, pela Assembleia da República, como era previsível, tendo em conta que o Partido Socialista, maioritário, é favorável à sua legalização, bem como o Bloco de Esquerda, a Iniciativa Liberal, o Livre e o PAN.

Quando for ultrapassada a fase parlamentar deste projecto-lei, haverá ainda duas instâncias que se poderão opor a este possível retrocesso legislativo que, a bem dizer, é um golpe de Estado inconstitucional: o Presidente da República e o Tribunal Constitucional.

Ao Tribunal Constitucional compete apreciar a conformidade das normas com a Constituição, que é muito explícita neste particular, porque declara, sem espaço para qualquer dúvida razoável, que “a vida humana é inviolável” (Artº. 24º, 1). Não se diz que a pessoa humana é inviolável, em cujo caso só seria aplicável aos seres humanos nascidos com vida, mas que a própria vida humana é inviolável. Proíbe-se, portanto, o aborto voluntário porque, como é óbvio, o ser em gestação é um ser vivo e a sua vida é, necessariamente, humana, bem como, pela mesma razão, a eutanásia.

Como o aborto foi liberalizado em Portugal, com a cumplicidade do Tribunal Constitucional, há que concluir que este órgão é, de facto, mais político do que jurisdicional, como agora, mais uma vez, se constatou, a propósito da reprovação, por motivos ideológicos, de uma candidatura académica para preenchimento de uma vaga de juiz. Assim se entende que, em vez de se cingir à aplicação da lei fundamental, tenha, ao legalizar a ‘interrupção voluntária da gravidez’, agido contra o espírito e a letra da Constituição. Tendo dado prevalência à vontade política, em detrimento da razão e da lei constitucional, é de temer que, também em relação à eutanásia, este Tribunal superior alinhe com o politicamente correcto, mesmo que, para tal efeito, tenha que contradizer, mais uma vez, o inequívoco Artº 24º, 1, da Constituição.

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Quando a lei fundamental, por via de interpretações contrárias ao seu sentido literal e ao seu espírito, tanto é uma coisa como o seu contrário, mais não é do que letra morta. O direito, que devia ser razão e justiça frente à prepotência dos poderosos e em defesa dos mais fracos – como são, certamente, os nascituros, os anciãos e os doentes terminais – converteu-se num instrumento ao serviço do poder dominante. Não é por acaso que a produção cinematográfica da realizadora Leni Riefenstahl que, em 1935, exaltava o regime nacional-socialista, se intitulava, precisamente, O triunfo da vontade.

Portanto, é improvável que o Tribunal Constitucional, se chamado a pronunciar-se sobre o diploma aprovado pela Assembleia da República que legaliza o homicídio a pedido, venha a decidir a sua evidente inconstitucionalidade. Assim sendo, à defesa da vida só lhe resta um último reduto: o Chefe de Estado, que prometeu cumprir e fazer cumprir a Constituição. Se se recusar a promulgar uma lei iníqua, pode ainda impedir que se concretize este ataque contra os mais vulneráveis cidadãos portugueses.

Para o fazer, o Presidente da República não tem por que apelar aos seus valores cristãos, embora também nada impeça que o faça, como ateus e agnósticos recorrentemente invocam os seus princípios, ou a falta deles. O Estado português é laico, mas não laicista e, portanto, não pode impedir que os titulares de órgãos de soberania ajam de acordo com as suas convicções religiosas e éticas, ao abrigo da liberdade das consciências, que a lei fundamental a todos, sem excepção, reconhece. Mas, neste caso, tal não é necessário: basta que o Chefe de Estado invoque o Artigo 24º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que jurou honrar.

Seria, sem dúvida, um gesto singular, de grande repercussão porque, de facto, não estamos habituados a atitudes de tamanha coragem e dignidade moral. Nem são frequentes, na política, pessoas de tão elevada envergadura ética. A ousadia de ser e agir em função de princípios, e não de interesses conjunturais, é o que distingue quem põe o patriotismo e a integridade de carácter acima das conveniências políticas.

Se o fizesse, o Presidente da República seria, certamente, exemplar, mas não único, na medida em que vários Chefes de Estado europeus, em circunstâncias análogas, se recusaram a promulgar leis iníquas, como foi o caso do Presidente da República de Malta, Dr. George Vella (como aqui escrevi, há um ano: PR não promulgará a despenalização do homicídio, Observador, 29-5-2021) e do Rei Balduíno, da Bélgica.

Com efeito, em Abril de 1990, o monarca belga renunciou, por 36 horas, à chefia do Estado, por motivos de consciência. Tendo as duas câmaras – a dos deputados e o senado – aprovado uma proposta de despenalização do aborto, o soberano exerceu o seu inalienável direito à objecção de consciência, informando o Governo da sua indisponibilidade para promulgar uma tal lei. Ao fazê-lo, Balduíno, que acedera ao trono muito novo, porque seu pai, o Rei Leopoldo III, se viu obrigado a abdicar, no seguimento da ‘questão real’, sabia que estava não apenas a pôr em risco o seu reinado, mas também a instituição monárquica e, até, a unidade nacional, de que a Coroa é o principal garante. No entanto, sendo um homem de princípios, preferiu arriscar o seu futuro e o da sua família, antes de comprometer a sua consciência, como cúmplice de uma lei profundamente contrária, não apenas aos princípios cristãos, mas também aos mais elementares princípios humanistas.

Como consequência desse seu acto heróico, gerou-se, na sociedade belga, uma acesa discussão sobre a monarquia. François Perrin, professor de Direito Constitucional, incapaz de compreender o alcance ético da atitude do soberano, achou que a suspensão temporária do monarca não passou de uma “ficção surrealista”. Por sua vez, os eurodeputados socialistas belgas exigiram a abdicação definitiva do monarca, por se recusar a promulgar uma lei aprovada pelos representantes do povo. Mas o Rei Balduíno, que tinha dito, na sua anterior mensagem natalícia, que as crianças merecem especial proteção e cuidado, também as não nascidas, não cedeu às pressões do poder político, porque, como então afirmou, “a sua consciência não lhe permitia assinar a lei”.

É nos momentos difíceis que se conhece a verdadeira índole dos homens. Enquanto uns cedem, miseravelmente, como Pôncio Pilatos, outros dão, nessas ocasiões, um bom testemunho da sua integridade moral e da sua fé, como os Chefes de Estado de Malta, o Presidente George Vella, e da Bélgica, o Rei Balduíno. De quem assim é, ao contrário dos políticos interesseiros, quais cortesãos mesquinhos, escreveu Sá de Miranda: “Homem de um só parecer/ Dum só rosto, uma só fé/ De antes quebrar que torcer,/ Ele tudo pode ser, /Mas de corte, homem não é” (Carta I, XXIV).