Há um regime latente, instituído no pós-25 de Abril, que visou sempre confinar a discussão e os actores políticos àquilo que esse regime entende ser aceitável. Talvez como reacção ao Estado Novo, esse regime impunha e impõe um quadro ideológico dentro do qual é permitido pensar politicamente. «[…] abrir caminho para uma sociedade socialista», assim principia a nossa Constituição. Assim ficou registado o intento.

Gorado o sonho de instituir um regime socialista de jure em Portugal, sonho que termina a 25 de Novembro com a intervenção decisiva de grandes homens como Jaime Neves, esta era então a materialização possível do desejo de uma parte substancial dos revolucionários. Restava, assim, abolir a direita no plano puramente conceptual, no plano das ideias.

Não se tratava de abolir a direita autoritária, que essa já havia caído de podre, e dela só sobraram dois ou três saudosistas. O objectivo era mais amplo, englobava todos os que não perfilhassem da mesma visão vermelha e socialista. Mesmo dentro da esquerda tentava-se afiançar com sectarismo quem era o verdadeiro representante do marxismo, e os confrontos foram mais do que muitos. Num gesto de ironia que só a esquerda pode proporcionar, recordemos que Zeca Afonso, então próximo da LUAR, foi apupado por militantes do PCP quando foi a Grândola cantar “Grândola, Vila Morena”. O confronto físico acabou com o fim do PREC, mas a ditadura do pensamento perdurou.

Foi este regime tácito, normalizado na Assembleia da República, instituição a que Álvaro Cunhal se referiu como sendo uma «brincadeira burguesa», que acusou Sá Carneiro ou Freitas do Amaral, Thatcher ou Chirac de serem fascistas. O teste era simples: todos os que não fossem conformes à visão socialista eram perigosos fascistas, prontos a instituir uma nova ditadura. Este regime tolerou, até porque lhe convinha, uma certa direita que de direita tinha pouco — e daí a tolerância. Esta suposta direita serviria como fiel da balança, dando a impressão de que o regime era apesar de tudo tolerante, pois tolerava a existência da própria direita. Mesmo Sá Carneiro, para se tornar tolerável teve de dizer em público, quase como acto de contrição, que a social-democracia do PPD era a via realista e equilibrada para o socialismo.

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Mais recentemente, o termo usado para reprimir os não conformes caiu em desuso, e foi sendo reciclado pelo plat du jour. Em 2011, era o neoliberalismo. Todos aqueles que discordassem da tal visão instituída e matizada eram perigosos neoliberais (neologismo de liberal esvaziado de significado político), serventes do grande capital, dos bancos, dos diktats alemães, do FMI e de quem quer que se lembrassem na altura. Com a eleição do Trump chegava depois a era do populismo, e todos os que discordassem das ideias magnânimas da esquerda eram naturalmente populistas. Com Bolsonaro, este efectivamente com tiques ditatoriais, voltamos novamente ao fascismo, pelo que se fechou o círculo.

E o regime assim se foi mantendo. Ao mesmo tempo que se tentava marginalizar qualquer brecha de direita, outros, os moderados, faziam capas e escreviam odes a Chavez e Maduro. Estes, os moderados, denunciavam a ascensão dos radicais e da extrema-direita enquanto se reuniam numa qualquer faculdade para tomar o chá das 5 e celebrar a Revolução de Outubro, o evento que gerou os regimes mais déspotas e sanguinários de que há memória. Nas pausas do paternalismo de Estado, dos impostos sobre o tabaco e das taxas sobre o açúcar, lá sacavam do charuto cubano para celebrar Fidel Castro. Outros há que desconfiam — na era das fake news nunca se sabe — que a Coreia do Norte é na verdade uma democracia. São estes os moderados do regime, de 2ª a 6ª Feira disponíveis no seu Parlamento.

Esta subversão ideológica funciona relativamente bem, até porque as gerações mais velhas sempre tiveram pejo em se afirmarem de direita, ou não fossem ser acusadas de salazaristas. Ou funcionava. Olhando para a recente avalanche de artigos de cronistas, alguns militantes do BE e PCP, outros ex-militantes, outros que não militam mas bem que poderiam militar, e mais dois ou três da direita tolerada para ficar composto o ramalhete dos moderados, paira no ar a ideia de que algo lhes está a escapar.

Claro que o pretexto para tanta comoção é a ascensão da direita autoritária, nacionalista e identitária, a tal que apoia Bolsonaro. Mas sabemos bem que, por um lado, essa direita não existe em Portugal, é marginal e está acantonada no PNR; e que, por outro lado, esse é um pretexto para no fundo colar todos os dissidentes do regime instalado, os não-conformes, os que não têm medo de rejeitar liminarmente o socialismo e a intromissão constante do Estado, a engenharia social e a imposição sociocultural via decreto-lei, à tal direita reprovável.

Tempos houve em que muitos provavelmente sucumbiriam perante o insulto e a afronta, ajustando os seus creres e as suas ideias ao permitido, ao instituído. Procurariam a aprovação tácita e prévia da esquerda. Evitariam termos como liberalismo ou conservadorismo. Embaraçados, retrocederiam. No limite, pediriam desculpa por terem pensado diferente.

Quarenta e três anos depois, a célebre invectiva de Pinheiro de Azevedo merece ser recuperada. Esse tempo chegou ao fim.