“Os Homens não desejam aquilo que fazem, mas os objetivos que os levam a fazê-lo” (Platão, Filósofo grego, 428 aC-347aC)
“A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos se não apenas uma parte da verdade sob ângulos diversos” (Ghandi, Político e pacifista indiano, 1869-1948)
“Para se ser tolerante é preciso fixar os limites do intolerável” (Umberto Eco, escritor e filósofo italiano, 1932-2016)
“Tudo quanto aumente a liberdade aumenta a responsabilidade” (Victor Hugo, escritor francês, 1802-1885)
O objetivo de juntar médicos e advogados num mano-a-mano imbuído de um saudável espírito de abertura, com o intuito de debater, em complementaridade, experiências e saberes, já se tinha realizado durante seis anos consecutivos, na altura em que eu e o meu amigo Cândido Casimiro presidimos, há mais de uma década, respetivamente às delegações das Ordens Distritais dos Médicos e dos Advogados de Setúbal. Iniciativas que valeu bem a pena terem sido levadas a cabo e que deixaram muitas saudades em quem nelas participou, razão pelo que pretendemos reeditá-las, tratando desta vez de temas que se impõem pela natureza conturbada dos tempos por que temos passado ultimamente.
Para mim, como já disse antes, juntar estas duas áreas de intervenção social baseia-se no facto de considerar que os dois maiores valores de uma Sociedade são a Liberdade e o direito à Saúde, que cada uma daquelas profissões simboliza perante qualquer cidadão de uma nação democrática e que respeita os ditames próprios do Estado de Direito. A ética inerente à índole dos princípios exarados nos seus Códigos Deontológicos deverá ser o que as une, como ficou eloquentemente sublinhado.
Tal como escrevi no texto em que identificava as razões desta iniciativa, achei que (cito), “era o momento de fazer uma reflexão plural que fosse para além das circunstâncias específicas da pandemia que nos assaltou de chofre nos finais de 2019 e que possibilitasse dar uma visão mais abrangente desta importante temática que estou em crer ser, em simultâneo, intemporal e premente, no intuito de estimular uma discussão que se pretende que posteriormente seja alargada aos órgãos do poder político e legislativo, porque a magnitude daquilo que é o verdadeiro fulcro em questão, deverá merecer da sua parte uma correspondente reflexão e eventual decisão, dado que novas pandemias virão fustigar futuramente a Humanidade e, como é lógico, a inovação científica e tecnológica não irá ficar suspensa. Daí que tudo deva ser contextualizado de modo a compatibilizar, com coragem e bom senso, os vários aspetos fundamentais da vida do Ser Humano em Sociedade: A liberdade individual e o bem coletivo, tal como o direito ao sigilo e o combate eficaz às ameaças da saúde pública, sem, contudo, jamais colocar em causa a intransigente defesa da humanização dos cuidados de que cada doente é sempre merecedor”.
Sobretudo, porque foi patente que, tal como afirmei em Coimbra, aquando da apresentação do meu último livro Reflexões em tempos de pandemia: Histórias de Vida, de Prazer, de Sofrimento e de Morte”, (volto a citar) “para salvaguardarmos o coletivo, tivemos que suspender a individualidade, estratégia tanto necessária quanto perigosa, porque deixa margem para que dela alguém se possa vir a aproveitar, transformando aquilo que deveria ser sempre entendido como excecional e fugaz, resultado de uma atitude assumida com vontade própria e esclarecida por cada um dos indivíduos, numa sub-reptícia dominação permanente, a pretexto de se estar a defender, prioritária e genuinamente, a saúde pública”.
Não perguntei a nenhum dos palestrantes, nem sequer procurei saber previamente por outros, se eram a favor ou contra aquilo que aqui se discutiu, pois o que pretendia era estimular o debate de ideias, de modo a fazer chegar a quem de direito dos órgãos de soberania competentes, a seguinte mensagem: pensem, ouçam os peritos, as organizações especializadas e a dita sociedade civil, e, decidam depois, informando com transparência e adequação os cidadãos acerca do seu conteúdo e respetivos fundamentos. Ou, então, tenham a coragem de dizer que não querem decidir. O que, como soe dizer-se, é, em si, uma decisão. Mas, não finjam que não existe a necessidade de refletir sobre estes problemas, porque o cidadão comum jamais entenderia que o fizessem, tal como, penso, o consideram os intervenientes neste Debate.
Tão simplesmente, porque, mais importante do que a legitimidade e o interesse conceptual e filosófico de discutir sem reservas estas questões, impõe-se reconhecer que existem dramas humanos que afetam gravemente a vida de muitos portugueses e é em nome deles que temos a obrigação de, enquanto elementos de uma suposta elite pensante, não nos cingirmos à confortável posição de ficar a meio caminho deste percurso e de consciência tranquila.
Assim, considero inaceitável, por exemplo, que qualquer mulher grávida (como no caso de uma minha doente com um hipotiroidismo grave e uma infeção por VIH não tratadas) entenda que tem o “direito” de recusar um tratamento (hormonal e antivírico), o que tem fortes possibilidades de, não só implicar um agravamento do seu próprio estado de saúde, mas, sobretudo, que o possa produzir e de forma irreversível, a alguém que não pode fazer quaisquer opções e muito menos defender-se de uma ameaça séria à sua própria saúde. Para esclarecimento dos leitores, esta doente veio a ter um aborto espontâneo no final do 1º trimestre de gestação, tendo sido a Mãe Natureza a evitar um imenso drama humano inerente a quem iria nascer com um cretinismo (forma grave de hipotiroidismo congénito que condiciona grave e irreversível debilidade mental), se não, também, infetado pelo vírus da imunodeficiência humana.
Ou que, como num outro caso de uma doente que ainda sigo regularmente em ambulatório, também com infeção por VIH e que também não se queria deixar tratar dessa infeção que contraíra cerca de 1 ano antes, alegando que não conseguia engolir quaisquer medicamentos (sendo presentemente a única que está a fazer antiretrovirais injetáveis em Portugal), não fora ter sido internada após ser conduzida pela polícia ao Serviço de Urgência do Hospital pelo Juiz de turno, na sequência do alerta efetuado pelo Delegado de Saúde e espoletado por mim, dado que também se recusava a vir ao Hospital de Dia do CHS para ser avaliada do ponto de vista clínico e psicológico, podendo colocar o seu filho em forte risco de poder contrair uma infeção potencialmente fatal. Tal só pôde ser evitado através do recurso aquela medida extrema, mas que eticamente se impunha, tal como a própria acabou por reconhecer, e, hoje “Nos” agradece penhoradamente, pois tem uma criança saudável que adora, ansiando, presentemente, ser de novo mãe.
Não caberá, então, aos médicos, nestes cenários para lá do limite do tolerável, a prioritária defesa intransigente das inocentes crianças que estiverem nestas circunstâncias, pergunto?
Termino, exemplificando toda esta complexa problemática com o seguinte cenário, que coloco à consideração de outrem, como já o escrevi numa publicação anterior: no limite, quem apoiaria conscientemente a decisão de alguém que saiba que lhe foi diagnosticado, por exemplo, uma infeção tão grave quanto a do vírus Ébola, que “caprichosamente” quisesse ir primeiro assistir a um desafio de futebol do seu clube num estádio repleto de incautos adeptos, antes de se deixar internar e de ser adequadamente isolado e tratado?
Porquê persistir em fingir que estes cenários são apenas remotamente hipotéticos, quando o que relatei de um outro doente com tuberculose extensivamente resistente evadido de uma prisão da Sibéria, e que foi trazido ao meu gabinete do CHS, onde trabalho, por uma representante de uma ONG que apoia doentes eslavos em Portugal, evidenciou precisamente o contrário!
Não será tempo de se ter coragem para fazer uma Lei adequadamente específica, à semelhança da que se fez para a Saúde Mental, que possibilite podermos responder eficazmente aos problemas que se enquadram nesta temática, ou seja, a das doenças infetocontagiosas com potencial epidémico/pandémico, que tenham elevada mortalidade associada e facilmente transmissíveis por via aérea e/ou por contacto direto, no respeito óbvio pelos mais elementares direitos, mas não sem exigir o necessário cumprimento simultâneo dos correspondentes deveres dos cidadãos, ainda que se possam tratar, creio, de casos excecionais, pergunto de novo?
Só lamento que os Ministros da Saúde e da Justiça, convidados a estarem presentes na Cerimónia de Abertura deste Debate, a par do Presidente da República, tal como de outras personalidades oficiais, no intuito de participarem a partir da plateia, não tenham vindo. Mas, ao menos, que a sua mensagem os interpele a preocuparem-se, pois aqui estiveram dois digníssimos deputados da AR, que, estou certo, se encarregarão de os questionarem.
(Adaptado do discurso de encerramento no debate “Aspetos controversos no controlo epidemiológico das doenças infeciosas – Ética, Direito e Saúde Pública” realizado no dia 30 de setembro de 2022, no auditório da Escola Superior de Saúde Egas Moniz)