Estamos no ano de 1999, em Bolonha, onde 29 ministros da educação de países estados-membros da União Europeia se preparam para assinar a Declaração de Bolonha. Antes disso, permitam-me recuar cerca de um ano, e situar-vos em Paris, mas desta vez no dia 25 de Maio de 1998, onde quatro ministros da educação de países estados-membros da União Europeia se reúnem para assinar a Declaração de Sorbonne – o pontapé de saída para a Declaração de Bolonha.

Nesta última declaração, assinada pelos ministros que tutelavam a educação superior em França, no Reino Unido, na Itália e na Alemanha, sobressaia uma vontade clara de construir um espaço europeu aberto ao ensino superior, utilizando o sistema de “créditos” (ECTS), e “promover a criação urgente de um quadro comum de referência, com vista a melhorar a legibilidade dos diplomas, a facilitar a mobilidade dos estudantes tal como as suas aptidões para o emprego.”

Voltemos a Sul, à cidade de Bolonha, um ano depois da Declaração de Sorbonne. Lançados os dados para cima do tabuleiro, juntaram-se em torno da mesa 29 ministros da educação de países estados-membros da União Europeia para jogarem às políticas de ensino. Reconheça-se, previamente, que a Declaração de Bolonha surge com um forte ímpeto federalista, e tem mais disposições e interesses políticos por detrás do que soluções para a evolução do ensino. Aliás, como estipula o primeiro parágrafo da declaração, que salienta que “o processo europeu tem-se tornado uma realidade cada vez mais concreta e relevante para a União […]. As perspectivas de alargamento assim como as estreitas relações com os outros países europeus acrescem uma maior dimensão a esta realidade. Simultaneamente, temos vindo a testemunhar uma consciencialização crescente em largas faixas da esfera política, académica e da opinião pública, da necessidade de criar uma Europa mais completa e abrangente, em especial no que respeita à construção e ao reforço das suas dimensões intelectual, cultural, social, científica e tecnológica.”

Da Declaração de Bolonha resultam, essencialmente, seis objectivos primordiais: a adopção de um sistema de graus de acessível leitura e comparação; a adopção de um sistema essencialmente baseado em dois ciclos principais, o graduado e o pós-graduado; o estabelecimento de um sistema de créditos – como, por exemplo, no sistema ECTS; a promoção da mobilidade, ultrapassando obstáculos ao efectivo exercício da livre mobilidade; a promoção da cooperação europeia na avaliação da qualidade; e, a promoção das necessárias dimensões europeias do Ensino Superior.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Acontece que, ao longo dos anos, não se veio a verificar qualquer tipo de conformidade entre a realidade do diploma e a realidade do ensino em Portugal. Com a implementação do processo de Bolonha observamos mais desvantagens do que vantagens. Desde logo, pela redução do período de frequentação do curso, o que faz com que seja leccionada a mesma quantidade de matéria em menos espaço de tempo – neste registo, os alunos não aprendem, antes vêem-se obrigados a decorar e a “despejar” nos exames toda a matéria. Os próprios docentes têm a percepção desta realidade, tanto que as universidades se vêem “forçadas” a ludibriar o espírito da lei, colocando cadeiras que anteriormente eram anuais, dividida em dois semestres. Não existe tempo para aprender nestes moldes, e a consequência é óbvia – profissionais mal preparados. Desde a entrada em vigor da Declaração de Bolonha que o tema do primeiro emprego jovem é uma constante.

Senão vejamos: um dos objectivos principais do processo de Bolonha é tornar o ensino superior mais competitivo, mais prático e que facilite a mobilidade pela Europa nas respectivas profissões. Um estudante do curso de direito, exemplificando, além de nada mais fazer durante os quatro anos de curso senão ter cadeiras teóricas, caso opte por entrar directamente no mercado de trabalho apenas com o 1º ciclo de estudo, sujeita-se ao opróbrio de não saber fazer até o mais básico trabalho de um advogado, como, por exemplo, preencher uma minuta.

O curso de Direito é um belo exemplo que espelha a realidade prática da Declaração de Bolonha. É um curso leccionado “à pressa”, com uma enorme quantidade de matéria num curto período de tempo, onde os alunos não aprendem pois não têm tempo para isso, desprovido de uma componente prática significativa, sem eficácia real no mercado de trabalho em outros países da União Europeia – pois as leis e a língua alteram-se de país para país, aumentado a impossibilidade de se exercer esta profissão noutro local – e, a cada dia que passa, devido à ausência de eficácia deste modelo de ensino, já se estuda a possibilidade de ter de se realizar obrigatoriamente o 2º ciclo de estudos no curso de Direito, para compensar as deficiências introduzidas no ensino superior pelo processo de Bolonha.

E os estudantes sabem, igualmente, que hodiernamente uma licenciatura não é suficiente para almejarem o cargo que sempre ambicionaram no mercado de trabalho, dando continuidade ao seu processo educativo no 2º ciclo de estudos. E, neste momento, quem é que ganha efectivamente com o aumento exponencial de matrículas no 2º ciclo de estudo? São as universidades públicas. Devido a todos os subsídios e bolsas para a educação, a licenciatura tem um preço meramente simbólico para um estudante do ensino superior público. Contudo, devido às deficiências geradas no ensino pelo Processo de Bolonha, a maior parte destes estudantes não vê alternativa senão ingressar em algum mestrado. Como todos facilmente observamos, as Universidades Públicas aproveitam o 2º ciclo de estudos para lucrar. Como explica bem este excerto retirado de uma notícia do jornal Expresso, de 26 de Março de 2022: “Ao contrário do que acontece com as licenciaturas no ensino público, as propinas cobradas nos mestrados não estão reguladas por lei (não há um valor mínimo nem aumentos máximos), cabendo às instituições definir os valores. Resultado: por ano, um estudante pode ter de desembolsar desde pouco mais de mil até seis mil euros. Sendo que a bolsa máxima paga pelo Estado é de €871 e só é atribuída a famílias com rendimentos bastante baixos.”

Mais uma vez, em nome da convergência real com a Europa, acabamos por vilipendiar o ensino e olhar para os jovens como produtos que têm de ser rapidamente produzidos e exportados, ao invés de nos preocuparmos em educá-lo condignamente e a garantir-lhes um futuro no nosso país.

A ideia da declaração de Bolonha não é errada, mas o modo como foi elaborada e implementada em Portugal levanta muitas questões que devem ser respondidas pelas entidades competentes. Deve o Estado proceder a diligências junto dos empresários, ordens profissionais e universidades, de modo a chegar a um consenso para que se possa propor uma reforma à declaração de Bolonha. O Estado deve fazer uma série de perguntas essenciais: quais foram os ganhos de Bolonha? quem foram os grandes beneficiários? que reformas têm de ser feitas?

Até hoje, todos os diplomas que visam a convergência real com a Europa não têm passado de utopias, pois, na realidade, não têm qualquer tipo de aplicabilidade prática e de conformidade com a realidade do nosso país. O ensino tem de ser recuperado e repensado, é um assunto demasiado sério para se perder em utopias federalistas.