Vivemos tempos complexos, com a guerra, as mudanças climáticas, a crise financeira, as divisões sociais, os grupos extremistas, os riscos cibernéticos, a que se junta agora um outro fenómeno, inquietante, a descredibilidade das instituições democráticas (partidos políticos, parlamento e governo) e a deterioração do regime democrático.
Ninguém pode ficar tranquilo com o que se passa.
As recentes demissões de membros do governo, num governo eleito há menos de um ano, vieram colocar em causa o equilíbrio do sistema. A sucessão de escândalos, os comportamentos e as práticas dos representantes políticos, reprováveis à luz dos valores democráticos, esbarram com as expectativas dos cidadãos. Mostram como é ténue a fronteira entre o que é correto e incorrecto, discrição e excesso, liberdade e constrangimento. Colocam a nu o declínio dos valores éticos tradicionais na política.
Será que os representantes políticos perderam a capacidade de escrutínio? Escrutínio significa investigar, indagar. Será que, depois de eleitos, não têm competência para escolher as suas equipas com base nos mesmos pressupostos que os elegeram? Então onde ficou o rigor, a ética, a integridade e a moral? Supomos que a sua dificuldade de decisão possa estar relacionada com a gestão de interesses opostos, ou seja, na gestão de conflitos, campo de actuação da ética.
Ora, sabemos que a democracia pressupõe a delegação do poder popular em representantes políticos, eleitos, com base na sua conduta imaculada e ética irrepreensível. E, como se vê, a essência da democracia depende seriamente da relação de confiança entre os cidadãos e os seus representantes políticos. Por isso, a discussão deste problema não pode, nem deve, ser reduzida a partidos políticos porque ela vai muito além disso. Não se trata de saber se quem está no poder é o partido socialista ou o partido social-democrata, trata-se de um bem maior e coletivo, trata-se da perda de valores e princípios, até então intocáveis, que servem de pilares ao regime democrático do Estado de direito.
Para evitar situações como aquelas a que acabamos de assistir, Miguel Poiares Maduro, vice-coordenador da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), deu nota de que o Observatório de Política e Soberania da SEDES está a estudar uma proposta. Em cima da mesa vai ficar a possibilidade de se sujeitar a “vetting” os nomes propostos para ministros e secretários de Estado. Isto significa que se vai escrutinar se “existem conflitos de interesse, impedimentos ou incompatibilidades, atuais ou potenciais, ou algum problema ético no seu passado, que possam determinar que, afinal, não é a pessoa adequada ao exercício daquelas funções públicas”. Este processo é apenas um auxílio, porque a decisão final será sempre de quem nomeia ou indica. Atentas as tendências aqui afloradas, consideramos que o “vetting” em Portugal deveria ser o suporte para qualquer escolha que venha a ser feita ao nível do aparelho de Estado, seja ministro, secretário de Estado ou qualquer outro titular de cargo público. Porque o erário público resulta das contribuições de todos nós, cidadãos singulares e coletivos, o Estado tem a obrigação de se apetrechar de recursos humanos competentes e íntegros e governar bem. O Estado não se pode dar ao luxo de desperdiçar e, menos ainda, de ser desleixado. Já vimos que as más escolhas do Governo levaram a uma série de demissões, ao mesmo tempo que minam a integridade das instituições democráticas e a confiança política dos cidadãos. Corroem a credibilidade e a virtude dos políticos que apenas deviam servir a causa mais nobre da democracia, o bem comum. Ser político é isso, é “servir o povo”.
Se a descredibilidade das instituições democráticas se tornar em mais do que uma tendência, ela contribuirá de forma significativa para a erosão da confiança dos cidadãos na democracia. Corre-se o risco de degenerar o regime democrático, sem prespectivas de alternativa e solução no horizonte, e com todos os perigos que isso possa trazer. Por último, se as escolhas continuarem a ser feitas sem qualquer escrutínio e os cidadãos continuarem a afastar-se, cada vez mais, da democracia importará perceber: onde vamos parar? Quem cá fica para governar? Aí Portugal, o Rei vai nu.