Lembro-me de ver o primeiro, filtrado por uma radiografia à anca do meu avô. Da cabeça no ar, do sol ardente, do meu pai ao lado, do pátio de casa (Sul da Ilha Terceira, Açores – legendaria o filme, se fosse um filme). Não me lembro desta excitação. Talvez apenas do nervosinho provocado pelo aviso de que, se olhasse directamente, poderia ficar cego. O empolgamento de um acontecimento tão drástico à distância de um movimento tão simples. Ou talvez esteja a completar a memória com algum adorno que não estivesse lá, o dia não resplandecesse assim tão claro, a radiografia fosse à coluna da minha mãe. Nesse tempo, festejava-se o Natal, o Carnaval e a Páscoa, o Pão por Deus, o Ano Novo, o São João. Não sei se éramos mais felizes ou mais tristes – nem sequer importa. Se me dissessem, então, que, um dia, milhões de pessoas marcariam férias de propósito e pagariam viagens e hotéis para assistir aquela brevíssima interrupção da luz, teria olhado melhor, feito muita força no nervo óptico, mirando através das nuvens claras e escuras do raio-x e ajudado com a imaginação, se fosse preciso, até ver, enfim, revelar-se o milagre.
Isto foi lá nos idos de 80, havia então apenas um canal de televisão nos Açores, que só começava a emitir a meio da tarde. Em Abril do futurista ano de 2024, bombardeado por milhões de canais, televisões, ecrãs, câmaras, smartphones, plasmas e outdoors, imagens de toda a espécie, uma semana começa com o mundo a parar para ver um eclipse solar. No dia seguinte, a newsletter do New York Times começava assim (tradução nossa): “Para uma nação dilacerada por toda a espécie de divisão, o eclipse ofereceu um momento de unidade, ainda que breve. No mesmo dia e à mesma hora, lembrou a todos que a vida pode ser mágica. Que estar vivo é uma experiência colectiva. Que há algo de deslumbrante em fazer parte da grande história das coisas.”
Belo, mas caramba. Diga-me aqui entre nós que ninguém nos ouve: será de mim? Eclipses solares totais são visíveis em média a cada 18 meses, algures no planeta. O último nos Estados Unidos deu-se nesse longínquo ano de 2017 (puxa. Haverá ainda alguém vivo para recordar?), o próximo por cá será em 2026 – mas os nossos noticiários também fervilharam em alguma excitação com “o acontecimento”.
Conta o NYT que cerca de cem casais celebraram matrimónio sob o eclipse, numa cerimónia colectiva em Russellville, Arkansas, jurando uns aos outros coisas do tipo: “Prometo cuidar de ti como este evento tão raro.” Tão raro, que, quando se repetir para aquelas bandas, lá por volta de 2044, o mais certo é já estarem todos divorciados (ei. Processem-me.). Que, do lado americano das Cataratas do Niágara, se gritou e chorou de emoção e que, do lado canadiano, as coisas estavam consideravelmente mais calmas. Que, em Central Park, Manhattan, músicos tocavam tambores enquanto a Lua cobria o Sol e milhares olhavam em espanto o céu, parados no meio do caminho, para irritação da malta que só queria passar de bicicleta ou continuar a sua corrida, como em qualquer outro dia do mundo (os meus pensamentos estão convosco, irmãos pragmáticos).
Donde é que isto vem? A urgência de pagar milhares de dólares para estar em Nova Iorque ou outro sítio bom (leia “bom” no sentido que quiser) da América do Norte para ver o dia ficar de noite durante três minutos? Não estou a dizer que não é bonito, mas faça este teste: google “eclipse solar” e vejas as imagens. Há poucos exercícios tão desanimadores como descobrir o que é impossível distinguir o desta semana de todos os outros.
Hoje, celebramos o Natal e o Hanukkah, o Carnaval e a Páscoa, o São Martinho, o Pão por Deus e o Halloween, o Ano Novo e o Ano Novo Chinês, o dia dos namorados, o da mãe, o do pai, o dos filhos, o da criança e os Santos Populares. Até o St. Patrick’s Day, plamordedeus, já se festeja por cá. Mais o Superbowl, a rentrée, a Oktoberfest e a Super-Lua, a Super Lua, alguémnosacuda, aquela maravilha que também já dá direito a peça de Telejornal e que, basicamente, consiste em: sim, a Lua é capaz de estar ligeiramente maior do que normal, mas, se não dissessem nada, ninguém tinha reparado.
No nosso tempo descrente, enfiamos paradoxalmente toda a cultura que nos passe pela frente numa liquidificadora que a verta à força em sentido. Em alegria. Tudo é um ‘xitex’, ou tem de ser um xitex. Constantemente, o ar do dia quer obrigar-nos a estar não sei onde, equipados com não sei quê, a viver uma coisa qualquer. Tudo é um hype que, num dia, enche feeds de redes sociais de fotografias e televisões de especialistas, e no outro desaparece num silêncio ressacado e entristecido, à espera de inventar o espasmo seguinte.
Há algo de belo no deslumbre perante algo tão simples e natural como um eclipse? Que bom que ainda somos capazes do espanto? Sim, mas é só mais um sintoma de quanto nos tornámos crianças aborrecidas, órfãs de qualquer coisa maior, aterrorizadas pela hipótese do tédio. De estímulo em estímulo, sonhamos chegar a um sentido, que na verdade nunca fica mais perto. Poderia ser fascínio pelo sublime, pelo que é maior do que nós, mas, olhando o histórico recente, tresanda mais a urgência de mapear o tempo para mascarar o pavor que temos do vazio. Ao nosso galopante desejo de identificação, anulação, dissolução no todo. A somente mais um episódio, mesmo que estelar, do nosso já cada vez mais velho conhecido F.O.M.O. (em português: cagufa de deixar escapar alguma coisa).
Fica-me a alegria de, por cá, só desses Açores primordiais se ter avistado, e meio de lado, o recorte do Sol pela Lua. Como se apetecesse ao eclipse brincar com a histórica ligação entre o arquipélago e a América e, mais profundamente, a todo o exercício de força da natureza. Não consta que se tenha feito grande alarido por lá por causa disso.
“Enjoy the silence”, já diziam profeticamente os Depeche Mode, há muitos anos, talvez mais ou menos ao tempo do primeiro encontro sol-lua-raio-X-do-avô-minha-retina. A normalidade faz os olhos bonitos.