Quando tudo, ou quase tudo, corre mal e os sinais, indisfarçáveis, estão por todo o lado, é a altura de voltar aos clássicos e de repetir a questão de um velho camarada: “que fazer?”. Uma solução de venerável antiguidade e de méritos comprovados consiste em encenar um retorno aos princípios e uma ascensão ao elevado plano da teoria. Se no baixo mundo reina a irremediável confusão, no céu das ideias é mais fácil instaurar uma ordem e uma hierarquia que apaziguem os espíritos e os distraiam dos tropeções do dia-a-dia. Tanto mais que as pessoas adoram discutir princípios, quanto mais não seja porque assim comprovam que os têm para dar e vender. A solução produziu no passado efeitos desejáveis. Discutia-se, por exemplo, o Gulag e outros encantos da defunta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. No campo comunista a coisa tendia a incomodar. E que tal passar para as dificuldades teóricas inerentes à construção do socialismo, dificuldades essas para as quais urgia buscar nos textos de Marx a solução que, bem procurada, certamente se podia, luminosa, encontrar? Pelo caminho, por meio da elevação à teoria, a natureza e os modos da escravatura comunista via-se deslocar para segundo plano. Não há incómodo de maior que a teoria, bem usada, não nos possa ajudar a esquecer.

Guardadas as devidas proporções, Portugal anda muito submetido a esta regra de ouro. Pedrogão, Tancos, Borba e tudo o resto – e o tudo não é pouco. Desorganização, inoperância, falta de coordenação, quando não declarada hostilidade, entre os vários organismos envolvidos. Passam-se culpas como se fosse o procedimento da praxe. Surgem, aqui e ali, personagens extravagantes como Marta Soares, bombeiro e futebolista. Tudo isto enquanto um presidente osculatório e condenado à ineficácia vai colando com cuspo os pedaços partidos e repetindo o mantra do apurar das responsabilidades, “doa a quem doer”. Em suma, o caos em todo o seu esplendor.

Por sobre tudo isto, os hospitais. Por razões pessoais que aqui não vêm para o caso, tenho seguido os desenvolvimentos nesta área com especial atenção. Não se contam já as demissões de directores de serviço por esse país fora, além do encerramento de unidades como a enfermaria de cardiologia do hospital de Santa Maria da Feira, que fez com que o hospital de Gaia, que já tem os problemas que se sabe, para o qual transitaram os doentes, entrasse em ruptura. Tudo indica um efeito de bola de neve, por mais competentes e dedicados que sejam os profissionais de todo o tipo que trabalham na área. O dinheiro e o número de profissionais não chegam para a manutenção de um Serviço Nacional de Saúde de que o país precisa como de pão para a boca. Acresce a isto a greve dos enfermeiros, que atrasa dramaticamente cirurgias e se arrisca a provocar catástrofes sem nome.

A ineficácia do governo é colossal. E até a indiferença: Costa paira sobre tudo a uma altura em que não arrisca visão de detalhe algum. Manda os seus ministros da Saúde, os pobres, prometerem o que sabem não poder cumprir. E não o podem cumprir, entre outras coisas, em virtude das decisões do próprio Costa: a “lei das trinta e cinco horas”, as cativações de Centeno e todos os truques que quotidianamente inventa para manter o equilíbrio entre as obrigações europeias e a possibilidade de uma maioria absoluta. No meio estamos nós, cidadãos inermes. E, na origem de tudo, uma mentira, uma enorme mentira que é o mito fundador do seu governo: o da viragem da “página da austeridade” irresponsavelmente aberta entre nós por Pedro Passos Coelho. A obscenidade desta mentira não tem limites e conta-se entre as mais negras páginas de vigarice que a política portuguesa produziu nas últimas décadas. Por causa dela, é impossível não conceder a, por exemplo, professores e enfermeiros (estes efectivamente muito mal pagos), uma razão formal que não desaparece com um passe de mágica. A justificação plena das suas reivindicações assenta directamente na inominável propaganda que o governo promoveu e de que continua a alimentar-se, na mentira sobre o passado e sobre as razões do passado, uma mentira em relação à qual não recuou um só milímetro. Há mentiras que não se podem reconhecer sem cairmos imediatamente num alçapão. E cair num alçapão é o horror no qual Costa vive e do qual foge a sete pés, por maior que seja a indignidade do exercício acrobático e a desgraça dos seus compatriotas.

A última artimanha de fuga é a tentativa de centrar o debate na nova “lei de bases” do SNS. A nova ministra da Saúde, Marta Temido, anuncia que deverá ser uma lei “de Esquerda”, já que o governo é um “governo de Esquerda”. Belas palavras que não querem dizer nada. O que não significa que não cumpram uma função precisa. E cumprem-na, revelando as sanguíneas esperanças de Costa. Mais precisamente, cumprem a função de lançar um manto de névoa sobre a tragédia e o caos que galopam pelos hospitais desse país fora. Esqueçam o que lêem, vêem e sentem (às vezes na pele) à vossa volta. O governo está a ir ao fundo dos problemas e sair-se-á com a solução de fundo para todos os vossos problemas. Não ouçam os demagogos, os populistas, que falam do caos. A nova “lei de bases” é a única coisa que importa e dela decorrerá uma transformação radical da situação. Venham antes discutir connosco princípios e planos, em vez de perderem tempo em diagnósticos empíricos e em soluções práticas para os males imediatos. Vamos antes pensar no futuro.

Dito de outro modo: o velho embuste adaptado às circunstâncias presentes, sem o mais remoto vestígio de assunção da mentira fundadora que o torna necessário. E o mais terrível de tudo isto é que, conhecendo um pouco a cabeça dos nossos políticos, entre os quais os da oposição, há uma séria hipótese de a aldrabice funcionar. Como disse atrás, ninguém resiste ao convite a discutir princípios, mesmo que essa discussão se faça à custa da atenção à tragédia quotidiana. Se assim for, o caos vai continuar a aumentar, enquanto as belas palavras florescerão numa pequena multidão de cérebros ocos e indiferentes ao sofrimento dos seus concidadãos.

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