Nos últimos tempos, devido à pandemia e consequente fecho das escolas, tem-se falado bastante da desigualdade no ensino e principalmente do seu agravamento causado pela pandemia.
No entanto, em conversas várias, tenho-me apercebido que quando se fala em desigualdade no ensino a maioria das pessoas pensa na dicotomia público – privado. Ora, isso é olhar apenas para uma pequena, diria muito pequena, parte da questão. A desigualdade dentro do ensino público é imensa e já o era antes da pandemia.
Baseando-nos em estudos internacionais, sabemos que a pandemia levou a perda de aprendizagens relevantes e mais acentuadas nas crianças de meios mais desfavorecidos. Para Portugal há pouca informação, mas num estudo do Centro de Investigação e Intervenção na Leitura, do Instituto Politécnico do Porto, realizado este ano letivo a 542 crianças de 11 agrupamentos de escolas do Porto a iniciar o segundo ano de escolaridade, verificou-se que 40% tinham um desempenho de leitura muito pobre ou frágil, um valor mais elevado que em anos anteriores e maior para crianças de meios desfavorecidos. Esperamos a publicação pelo Ministério dos resultados dos testes aplicados no início do segundo período a cerca de 23 mil alunos.
Se quanto ao efeito da pandemia nas aprendizagens em Portugal temos muito pouca informação, conseguimos dizer mais sobre a situação pré-pandemia. E as diferenças que já existiam mostram bem a necessidade de investimento na recuperação das aprendizagens dos alunos mais fragilizados.
Apresento alguns números sobre o ensino primário, onde podíamos ter a ingenuidade de pensar que as diferenças seriam pequenas. Não é assim e estas diferenças vão ter impacto nos níveis de ensino seguintes. É difícil compensar as aprendizagens que não se fazem nos primeiros anos de escolaridade.
Olhando para o último ano em que houve exames no 4º ano, em 2015 a média nas provas do 4º ano nas escolas públicas variou entre 4,43 e 1,5 numa escala de 1 a 5. Uma enorme diferença. Depois os exames acabaram e deixaram de se publicar notas relativas ao ensino primário que os pais e a sociedade pudessem perceber e comparar. Mas não é por não estarem publicadas de forma clara que as diferenças desapareceram.
O que podemos ver agora são os resultados nas provas de aferição de 2º ano, sendo as mais recentes de 2019. E é preciso algum cuidado para perceber os resultados nestas provas, já que não há notas. Na página do IAVE está publicado o relatório das provas de aferição de 2019 (pode ser visto aqui). As provas são avaliadas por domínio, 4 domínios para a Matemática e 3 para o Português no 2º ano de escolaridade. Depois, dentro de cada domínio cada prova é avaliada como “Conseguiu”, “Conseguiu, mas”, “Revelou Dificuldades” ou “Não Conseguiu/Não Respondeu”. E o que o relatório nos diz é a percentagem de alunos que obteve cada uma destas classificações em cada um dos domínios.
O portal Infoescolas do Ministério da Educação, dá-nos, por escola, uma informação que se aproxima do número de positivas em cada prova. É descrito assim: “Percentagem de alunos que obtiveram o nível “Conseguiu” ou o nível “Conseguiu mas…” em pelo menos metade dos domínios da prova”.
Usando esta medida de avaliação positiva, podemos concluir, com algum esforço, que a variação de resultados é enorme e que em algumas escolas a situação exige que se encontre forma de apoiar mais os alunos. Por exemplo, e olhando apenas para as escolas públicas do concelho de Lisboa: a percentagem de alunos com resultados positivos varia, em Matemática, entre 26% e 96% e em Português, entre 21% e 85%. No resto do país encontramos diferenças semelhantes. No distrito de Faro, também encontramos uma escola com 89% de positivas a Matemática e outra com 48%, e com 40% de positivas a Português. A Norte, no distrito de Bragança, encontrei uma escola com 85% de positivas a Matemática e 76% a Português e outra escola com os resultados assustadores de 33% de positivas a Matemática e 14% a Português. São todas escolas públicas, mas a realidade vivida nestas escolas não é, certamente, semelhante.
O Ministério deve usar estes resultados para acompanhar o funcionamento das escolas e intervir onde é necessário. No entanto, no ano passado não houve provas de aferição e este ano já foram canceladas. Como podem os pais perceber se as aprendizagens dos seus filhos estão a evoluir como seria desejável? E como sabe o Ministério quais as escolas, e quais as crianças, que mais precisam de acompanhamento? Numa fase pós-confinamento parece-me que estas provas são ainda mais necessárias para guiar os investimentos necessários para recuperar as aprendizagens perdidas.
Para que a educação contribua para uma verdadeira igualdade de oportunidades não pode dar o mesmo a todos. Mesmo dentro do sistema público de educação é preciso dar mais, e logo nos primeiros anos de escolaridade, a quem começa este percurso numa posição de desvantagem. Isto implica reforçar o número de professores, auxiliares de educação, psicólogos e assistentes sociais nas escolas onde fazem mais falta. Se os recursos são limitados, a escolha da alocação desses recursos dentro do sistema público de educação é ainda mais importante e, no contexto pós-pandemia, é urgente.