Por muito importante que seja o problema a tratar nas relações internacionais, o melhor caminho para a sua solução não é a deturpação descarada dos factos para justificar a nossa posição.
O século XX e o século actual vão ficar marcados, entre outras coisas, pela contradição explosiva entre dois princípios do Direito Internacional: o direito à integridade das fronteiras e o direito dos povos à autodeterminação. No caso da separação e da independência da Catalunha, eu, pessoalmente, considero que será um grande erro esse passo, pois provocará um efeito de dominó, que poderá reflectir-se de forma séria em Portugal, mas a última palavra pertence aos catalães e aos espanhóis em geral. A solução terá sempre de ser bilateral e esperemos que sem derrame de sangue.
Num artigo de opinião no Público, o Professor José Pacheco Pereira defende que os catalães têm direito a referendo, mas nega esse direito aos bascos porque, alegadamente, “o independentismo catalão nada tem que ver com o nacionalismo basco mais extremado da ETA”. Mas será que a luta pela independência do País Basco se limitou ao “extremismo da ETA”, será que a ETA é a única força política que tem esse objectivo?
Mas o mais surpreendente é quando o Professor José Pacheco Pereira recorre ao caso da Ucrânia para criar a política da União Europeia, que não está livre de erros, mas não é a culpada de tudo.
“E depois o argumento da legalidade é o mais hipócrita de todos. A mesma Europa que recusa o referendo catalão participou num processo ilegal de derrube do legítimo Governo ucraniano, apoiando as forças protofascistas que ocuparam a Praça Maidan em Kiev, com a consequência na guerra civil nos Donets, na intervenção russa e na ocupação da Crimeia. Sim, o Presidente corrupto que foi derrubado com o apoio da União Europeia era o Presidente legítimo e eleito da Ucrânia”, escreve o Professor Pacheco Pereira no seu comentário.
Nem queria acreditar no que estava a ler, pois mais parecia uma citação, ou uma mantra, do Avante, do Sputnik ou da Russia Today, o primeiro órgão de informação do PCP e os restantes do regime de Putin.
Professor, é verdade que a União Europeia não deveria ter permitido que, depois do acordo assinado entre a oposição ucraniana e o Presidente Victor Ianukovitch, que este fosse obrigado a fugir de Kiev, mas chamar protofascistas às forças presentes na Praça Maidan não corresponde à verdade. Nas eleições presidenciais de 2014, que se seguiram à fuga de Ianukovitch, os candidatos protofascistas como Oleg Tiagnibok ou Dmitri Iroch tiveram resultados residuais. Além disso, o Professor não deu conta das provocações montadas pelos homens de Ianukovitch, apoiados pelos serviços secretos russos durante esses acontecimentos.
Por outro lado, o Professor afirma que a guerra civil “nos Donets” [talvez José Pacheco Pereira tivesse em vista as regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk], bem como a anexação da Crimeia foram consequência desse processo, o que não corresponde à verdade.
Não afirmo que Kiev tenha gerido da melhor forma a situação, mas esses acontecimentos são consequência, só e apenas, da ingerência militar russa nessas regiões, que não perde uma oportunidade neste sentido. Em todos os casos, os problemas internos dos países devem ser resolvidos pelo seu próprio povo, e não à custa da força militar dos países vizinhos mais fortes. A elite política e económica da Ucrânia pode ser corrupta e incompetente, mas isso não justifica invasões à velha maneira soviética.
A intervenção na Crimeia foi realizada a pretexto da “protecção dos russófonos da região”, mas quantos foram alvo de perseguições ou repressões no tempo em que essa região pertenceu à Ucrânia ? E que direito assiste ao Kremlin de enviar tropas (não eram regulares, segundo Putin, mas oficiais e soldados que estavam de férias), tanques, armas pesadas, mísseis para as regiões de Donetsk e Lugansk? Será que a tese da “defesa dos russófonos” é mais válida e justa que o “internacionalismo proletário”?
A hipocrisia da política externa russa na região continua hoje bem evidente. Depois de ter recusado a presença, durante vários anos, de capacetes azuis, Moscovo vem agora propor o seu envio para a linha que divide as regiões separatistas da Ucrânia, mas recusa que os soldados da ONU sejam instalados na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia. Porque será? Para se apoderar de duas regiões ucranianas congelando o conflito.
O Professor dá outro exemplo infeliz: “a Europa fecha os olhos a realidades como a da Moldova, onde há dois governos e dois “países””, mas pergunta-se: o que pode fazer Bruxelas contra mais um território ocupado pelas tropas russas como a Transnístria? Quem está interessado em manter o conflito congelado, quem limita a soberania da Moldávia ao ponto de decidir se esta pode ou não juntar-se à Roménia?
P.S. Caro Professor José Pacheco Pereira, claro que nos devem preocupar os grandes problemas da Humanidade, principalmente num mundo tão instável e agitado, mas penso que não devemos esquecer as pequenas coisas, pois elas também têm importância. Por exemplo, as pequenas promessas que se fazem e não são cumpridas. Tanto mais quando elas partem do que promete. Mas isso é outra história.