1Nas eleições do passado Domingo, a esquerda foi derrotada em toda a linha em Espanha. Aliás, mais do que uma derrota da esquerda, foi, isso sim, o início do fim do Sanchismo. Para compreendermos a situação política actual em Madrid, importa definir com clareza o que é o Sanchismo. Formado em Junho de 2018, o Sanchismo é bastante diferente – até na sua base social de apoio – do PSOE tradicional. Enquanto o PSOE tradicional, especialmente na província continua a ser fundamentalmente materialista e obrero, o Sanchismo é uma coligação social e pós-eleitoral que juntou o PSOE ao Unidas Podemos, o Catalão ECP, e o Galego GeC. As necessidades eleitorais e governativas obrigaram Sanchéz a aproximar-se do paroxismo da agenda identitária do Unidas Podemos.
2O Sanchismo teve duas vitórias importantes. Na frente económica é inequívoco, mesmo para os seus adversários, que temiam uma deriva esquerdista do governo, que o governo tem tido um bom desempenho. Ao mesmo tempo, e apesar de isto parecer-nos longínquo dado o turbilhão de crises que se sucederam, depois da catástrofe de Rajoy na questão catalã, que ajudou, também, a catapultar o Vox dada a percepção à direita de que o PP estava a ser suave na questão nacionalista, Sanchéz conseguiu pôr água na fervura e, pelo menos para já, acalmar um pouco a situação, que, em 2017, arriscava-se a abrir brechas irreversíveis.
3Todavia, a coligação teve vários problemas, essencialmente de falta de coerência interna e de dificuldades de coordenação de preferências muito distintas das bases eleitorais. Em primeiro lugar, os partidos de índole regionalista estão com crescentes dificuldades em extrair benefícios da sua participação no governo. À medida que o tempo avança, Sanchéz já pouco tem para oferecer que compense o apoio destes partidos. Em segundo lugar, em bastantes ocasiões, a agenda governativa foi capturada pelo extremismo ideológico do Unidas Podemos, do qual é um bom exemplo a lei do solo si es sí, que levou Sanchéz, de resto, a votar com o PP no Congresso contra os membros da sua própria coligação, num sinal claro de ruptura interna.
4Para além das suas dificuldades internas, o governo está, naturalmente, a acusar o desgaste de quase cinco anos do poder. Ao contrário de Portugal, em que ao PS sucede o PS, em Espanha, a rotação de poder é real e, de resto, saudável.
5Face à derrota eleitoral, Sanchéz fez um óptimo golpe político, do qual, confesso, não estava à espera. Havia no ar, há meses, a sensação de fim de festa e de que o momento da direita estava a chegar. Por isso, havia quem defendesse nas hostes do PSOE que era preciso retardar as eleições o mais possível para conseguir passar um conjunto de peças legislativas. A dimensão da derrota do último domingo mudou, contudo, os cálculos no quartel socialista. Sanchez terá calculado: será que somos capazes de um melhor resultado eleitoral no final de Julho ou no final do ano? Para o cálculo entram três variáveis – a força eleitoral da direita, o desgaste político do Governo e a desorganização eleitoral da extrema-esquerda.
6Parece-me de meridiano bom senso que Sanchéz, político experimentado, sabe que vai perder no próximo dia 23 de Julho. Posto isto, há ainda vários objectivos a cumprir. Em primeiro lugar, tentar, dentro do possível, mitigar o momentum do PP. Na noite de domingo, na Calle Génova, Feijóo afirmou que ainda não estava pronto, mas que estava a trabalhar para tornar-se presidente do governo dentro de uns meses. Em segundo lugar, as eleições gerais, a 23 de Julho, coincidirão com o fim das negociações entre PP e Vox para a governação das regiões. Sanchéz pretende utilizar a saliência que os acordos entre o PP e a direita radical inevitavelmente terão, no final de Julho, para fazer um paralelo com aquilo que poderá acontecer ao nível nacional. Com isso, tentará que a sua derrota não seja tão calamitosa.
7Em terceiro lugar, Sanchéz vê aqui uma oportunidade única para, mesmo perdendo as eleições, ajudar o PSOE a recuperar a hegemonia na esquerda espanhola. Depois de mais de uma década em que se afirmava que o velho bipartidarismo estava defunto, os péssimos resultados do Ciudadanos e Unidas Podemos prenuncia que as próximas eleições serão a oportunidade para o PSOE conseguir tornar-se novamente a força hegemónica à esquerda.
8A esquerda à esquerda do PSOE tem vindo a tentar fazer uma coligação, chamada SUMAR, liderada pela Vice-Presidente do Governo Yolanda Díaz, para minimizar os votos desperdiçados. Ao longo dos últimos anos, o Unidas Podemos resistiu à entrada nesta coligação, porque, achavam, eram os donos do espaço à esquerda do PSOE. A hecatombe deste domingo forçará a coligação SUMAR a entender-se rapidamente até porque existe um prazo legal de dez dias, a contar a partir de ontem, para que os partidos e coligações registem o seu interesse formal na participação nas eleições. O pouco tempo para o entendimento e para a criação de uma estrutura de campanha, especialmente considerando o sectarismo tradicional da esquerda radical, contribuirão ainda mais para o movimento de recuperação da hegemonia à esquerda por parte do PSOE apontado acima.
9Quanto à direita espanhola, o que posso dizer é que é absolutamente infrequentável. Sei que isto pode chocar alguns leitores do Observador. Existem, no entanto, bastantes razões para um liberal, cosmopolita e europeísta não se rever no bafio iliberal e beato da direita espanhola. A dita é composta por amálgama de saudosistas do Generalíssimo, pela direita dos negócios que usa o Estado de forma meramente instrumental, que tem posições ridículas sobre as alterações climáticas ou a inclusão de minorias numa democracia liberal, e que tem uma incapacidade total de lidar com a questão da Catalunha sem restaurar velhos fantasmas do passado. Feijóo será uma espécie de Rajoy redux, um homem cinzento e sem chama e, pelo menos que eu tenho ouvido, sem uma ideia estruturada para o país.
10Para último, uma nota sobre alguma direita portuguesa que, estranhamente, vê em Feijóo e, especialmente, em Ayuso ídolos políticos com algum tipo de programa político estruturado e cabeças de fila de movimentos intelectuais liberais. Ayuso tem várias virtudes: é uma excelente candidata em campanha, é uma mulher bonita e telegénica e tem uma garra política incomum. O conteúdo, contudo, é francamente constrangedor. Veja-se, a título de exemplo, a sua resposta, no principal debate político para as eleições regionais de 2023. Quando questionada sobre o corte de milhares de árvores em Madrid, das quais a cidade precisa desesperadamente para combater as altas temperaturas, Ayuso afirma que isso não é dramático. A sua solução passa por oferecer uma planta (sic) para cada madrileno colocar na sua varanda. Q.E.D.