1Diferentemente de Espanha, cuja política e história estiveram no centro da história do século XX, Portugal, na ausência de uma cultura política autóctone, viveu sempre de expedientes de imitação de tudo o que se passa no estrangeiro. Nunca nada de fundamental da história Europeia se passou em Portugal, incluindo movimentos artísticos, culturais ou políticos. Para ser claro: as eleições em Espanha estão a ser utilizadas em Portugal como arma de combate político para efeitos internos. Ninguém está verdadeiramente interessado em Espanha. Pelo contrário, assistimos nas redes sociais a um estranho debate sobre a génese da geringonça. A direita continua a lamber as feridas de 2015, sem perceber muito bem o que se passou e sem retirar as devidas ilações para conseguir seguir em frente e apresentar caras e propostas novas aos eleitores. A esquerda assiste, mais uma vez, impante e orgulhosa à capacidade de um dos seus transformar aquilo que, há uns meses, parecia uma derrota pesada naquilo que é, objectivamente, uma vitória política.

2 Feijóo fez uma má campanha. Esta não é apenas a minha opinião. As notícias recentes vindas da cúpula dos Populares confirmam que existe amplo desconforto no partido acerca do modo algo errático como a campanha foi gerida. Em primeiro lugar, a não comparência no derradeiro debate eleitoral terá custado votos a Feijóo que deixou Abascal tornar-se a cara da direita no confronto com Sánchez e Díaz. Em segundo lugar, a dificuldade em explicar as suas relações com um conhecido narcotraficante galego complicou a vida ao candidato do PP nos últimos dias da campanha. Numa campanha profissional, esta matéria deveria ter sido resolvida há meses. Não é a mesma coisa fazer política na província ou em Madrid. Por último, a campanha do PP ficou marcada pelo momento das pensões, no qual Feijóo foi apanhado a mentir em directo. Todos os políticos – sem excepção — mentem em campanha. Nem todos são apanhados de forma tão flagrante.

3 A relação entre PP e Vox dificultou a capacidade de coordenação eleitoral da direita. Ao contrário das certezas de muita da opinião publicada em Portugal, para mim, não é linear qual deve ser a estratégia de um candidato de um partido de centro-direita na sua relação com a direita radical, na ausência total de cooperação do maior partido de centro-esquerda. Sejamos claros. Enquanto existirem partidos da natureza do Vox com uma dimensão eleitoral razoável, a direita moderada não conseguirá obter sozinha uma maioria para governar. Para chegar ao governo, sem a cooperação do PSOE, independentemente da campanha que tivesse feito, Feijóo precisaria do Vox. Alguns líricos acham que bastaria ao líder do PP ter sido claro quanto à sua política de alianças, afirmando que não se aliaria ao Vox, para ter logrado obter uma maioria suficiente para governar. Uma análise sociológica das preferências dos eleitores, mostra que este cenário – PP maioritário com Vox com relevância eleitoral – é impossível de acontecer. Simplesmente, não existem eleitores suficientes para alimentar simultaneamente um PP maioritário e um Vox com mais de trinta deputados.

4 Neste contexto, o PSOE tornou-se aquilo que podemos designar por partido pivot do sistema partidário, isto é, o actor político que decide quem vai governar. Ao longo da campanha, Sánchez mostrou-se muitíssimo preocupado com a influência política do extremismo na política espanhola e da possibilidade do Vox coligar-se com o PP. Dou absoluta razão ao líder do PSOE. A entrada do Vox na esfera do governo teria efeitos muito negativos em Madrid e colocaria sal em velhas feridas da guerra civil e da transição que não estão verdadeiramente fechadas. Todavia, Sánchez não parece preocupado com o extremismo do Bildu e do Junts, partidos indispensáveis para a formação do seu governo. Como Diogo Noivo já explicou neste artigo, o Bildu é um partido herdeiro directo de uma organização que assassinou 850 pessoas em democracia e, para além disso, tem no ódio étnico aos não-bascos um dos seus pilares. Para além disso, o Bildu nunca fez o devido acto público de contrição, rejeitando liminarmente o seu passado. De resto, a xenofobia não é apenas uma marca de água do Bildu. Os sectores mais radicais do Junts argumentam que, num potencial referendo, os milhares e milhares de espanhóis que, ainda durante a ditadura Franquista, migraram da pobreza da Estremadura e da Andaluzia para a Catalunha não deveriam ter direito a votar porque não têm sangue catalão. As posições do Junts sobre o futuro da Catalunha são, no mínimo, preocupantes. Depois de ter conseguido acalmar a situação em Barcelona durante o seu governo, após a gestão desastrosa por parte de Rajoy, Sánchez parece agora disposto a brincar com o fogo. O Junts já colocou em cima da mesa as suas reivindicações: um indulto generalizado às pessoas envolvidas na tentativa gorada de secessão de 2017 e um novo referendo de auto-determinação. O Presidente do Governo espanhol prepara-se, pois, para partir para negociações de formação de governo com base numa promessa que é inconstitucional e contrária aos fundamentos dos pactos de 1978. Poderia ser estranho, mas estamos na Europa em 2023, onde o estado de direito e a lei são um tigre de papel desde que sirvam para servir um dos nossos.

5 Infelizmente, nos últimos anos, a política espanhola evoluiu para uma crescente polarização com competição política centrada em dois grandes blocos. Obviamente que tenho bem presente que Espanha é uma democracia parlamentar onde se elegem deputados e não o chefe do governo. Todavia, para além da matemática, é preciso tecer, também, considerações políticas no momento de fazer coligações e pactos para chegar ao poder. Assim como Feijóo deveria fazer um cordão sanitário ao Vox, Sánchez deveria fazer um cordão sanitário a Junts e Bildu. E, sim, para que não restem dúvidas estou a fazer uma equivalência funcional entre estes partidos. Todos eles são anti-sistema, na medida em que não aceitam as regras do jogo acordadas na transição e que, de resto, em Espanha, ao contrário de Portugal, foram objecto de um referendo em 1978. Nesse referendo, 91.8% dos votantes expressaram o seu apoio à nova constituição, apoio esse que foi, inclusive, mais alto na Catalunha onde as novas regras do jogo tiveram o apoio de 95.15% do eleitorado.

6 Em última análise, as democracias avançam com coligações formais e informais das elites moderadas. Os extremistas nunca fizeram avançar os países. Sanchéz deveria permitir aquilo que seria natural e que, de resto, o PSOE fez em 2016 quando permitiu a Rajoy formar um governo minoritário depois de vencer com uma maioria relativa. Do ponto de vista da estabilidade, o PSOE deveria viabilizar um governo do PP. Mas, tal como em 2016, quando permitiu a Rajoy formar um governo minoritário depois de vencer com uma maioria relativa, isso só seria possível com a demissão de Sanchéz e uma guerra civil interna que, de momento, não se vislumbra. Então, as elites moderadas de PP e PSOE coligaram-se informalmente, afastando Sánchez, já então um feroz opositor de acordos centristas, para permitir a investidura de um governo minoritário. Infelizmente, a moderação, a civilidade e o apelo às elites estão fora de moda. O populismo venceu.

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