Muitos viram aqui no Observador ou no Facebook o vídeo que a actriz Sofia Ribeiro partilhou nas redes sociais, certamente para ajudar mais pessoas que, como ela, são obrigadas a lidar com um diagnóstico de cancro, com os tratamentos e todos os efeitos secundários, sejam físicos ou emocionais. Vi o vídeo até ao fim pondo-me no seu papel. Ou melhor, tentando fazê-lo, porque quem não vive esta realidade não chegará nunca a saber o que é atravessá-la. Podemos estar à cabeceira, podemos ser família chegada ou amigos-muito-amigos, mas realmente nunca chegaremos lá. Nunca saberemos o que sentem aqueles e aquelas a quem é dado viver a erosão desta e outras doenças graves, progressivas, crónicas ou incuráveis. Sabemos apenas, por eles, que no momento da confirmação de um diagnóstico de cancro tudo nos quebra e desanima. Naquele instante o mundo fica um lugar ameaçador, onde tudo parece estranho e impossível. A angústia e o medo alastram, infiltram-se por todos os poros e correm tão depressa como o sangue pelas veias. A dor emocional toca as fibras mais sensíveis e as interrogações disparam em todos os sentidos. Porquê eu? Como é possível? E agora? Será que vou morrer?

Perante uma notícia de cancro nada nem ninguém fica como estava. E, no entanto, sendo realistas sabemos que hoje em dia é possível vencer muitos cancros e há cada vez mais pessoas que são testemunho disso mesmo.

Sabemos também que existem infinitas possibilidades terapêuticas e é possível sobreviver física e emocionalmente a esta doença, mas a palavra ‘cancro’ continua a ter um peso brutal. E se assim é, que podemos fazer depois da confirmação do diagnóstico? Onde ir, quem procurar, a quem pedir opiniões, em quem apostar? Nos médicos convencionais ou alternativos? Nos especialistas portugueses ou em ir ao estrangeiro? Confiamos mais nos amigos ou nos desconhecidos? Não há respostas universais para interrogações individuais tão urgentes porque cada caso é um caso e, nesta lógica, cada pessoa terá que procurar e encontrar caminhos que a levem, primeiro a uma possibilidade de pacificação interior e consenso terapêutico. A única boa notícia, nesta fase, é a certeza de que todos os especialistas convergem quando falam de uma atitude realista e batalhadora, dizendo que faz toda a diferença nesta luta desigual. Garantem, inclusivamente, que tem um poder incrivelmente terapêutico. Lutar, acreditar e não perder a esperança pode ser um caminho árduo e difícil, porventura até devastador, mas é o que leva mais longe. E o que permite desanimar por vezes, sem desistir nunca.

Como? Eis a grande questão para tudo o que é essencial na vida: saber como. Como vou conseguir, como vou saber, como vou fazer, como vou colocar os meios para atingir os fins? E é neste capítulo vital que os testemunhos de outros que já passaram pelo mesmo é crucial. Fui voluntária da Associação Acreditar durante 10 anos e conheci bem algumas pessoas já curadas que largavam tudo o que estavam a fazer para atravessarem a cidade a correr, de forma a estarem presentes nos momentos imediatamente a seguir ao choque do diagnóstico. A Madalena d’Orey é um destes anjos que resgatou o sentido de vida e a coragem de centenas de crianças, ‘só’ por estar ao seu lado, à sua cabeceira, depois de ela própria ter vencido um longo cancro, todas as recidivas e traumas, quando era adolescente. Mês após mês, ano após ano, vi a Madalena dar uma prioridade absoluta e imediata aos telefonemas de mães, pais, médicos, profissionais de saúde e em especial, das próprias crianças doentes. Mesmo não tendo pensado escrever esta crónica para lhe prestar homenagem, uma vez aqui chegada, não posso deixar de o fazer pois a sua atitude lutadora, a sua capacidade de rir e chorar, de fazer perguntas e devolver respostas, de falar do cancro com transparência e naturalidade, com muito amor e por vezes até humor, levantou do chão muitas famílias e contribuiu para curar muitas crianças. Curar neste sentido terapêutico literal de que falam os médicos quando valorizam a atitude de coragem e luta dos seus doentes.

Todos os anos são feitos incontáveis estudos com doentes oncológicos e todos estes estudos provam uma e a mesma coisa: a esperança de vida aumenta quando conseguem (ou decidem, porque também pode ser um decisão consciente) aceitar a doença e pedem ajudas a médicos, psicoterapeutas, familiares e amigos. A família e os amigos são pilares vitais na luta contra a doença, seja ela qual for. A solidão, o isolamento, o fechamento ou a dissimulação dos que escondem a sua doença para não preocuparem os outros, ou não revelarem a sua fragilidade, são absolutamente nefastas. Falar com quem já viveu situações semelhantes é essencial e há cada vez mais associações e grupos de partilha. Cultivar uma atitude realista de esperança passa por uma maior abertura espiritual (não estritamente religiosa, note-se), mas passa seguramente também pelo fortalecimento da condição fisíca e psicológica. Existe uma relação muito íntima entre a condição física e o estado psicológico e todos sabemos que a sua degradação progressiva degenera em mais dor e maior vulnerabilidade. Muitas doenças têm uma origem psicossomática e não podemos descurar os estados depressivos nem os riscos de uma alimentação deficitária, entre outros. Finalmente e porque o que o vídeo da actriz Sofia Ribeiro nos pára e nos obriga a olhar com olhos de ver, aquilo que mais interpela é a coragem com que aceita expor-se e dar testemunho já nesta fase pós-diagnóstico, mas também o realismo com que junta os amigos à sua volta, sabendo que as forças deles serão a partir de agora o cimento da sua fortaleza interior. Não se entregar à doença passa por agir, por recusar a vitimização e a prostração próprias – e legítimas! – de quem foi atingido por esse pedregulho que é o diagnóstico de cancro. Quem me dera saber fazer o mesmo se algum dia me acontecer uma coisa parecida. Mesmo não sendo actriz e sabendo que não terei a mesma coragem de me expor da maneira tocante e bela como ela o faz, espero saber transformar, como ela, o pedregulho num rochedo onde me possa segurar e (re)construir.

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