Não sei como se ensina D. Dinis, hoje, nas escolas básicas e secundárias. Provavelmente mal, como me dizem que andará em geral o ensino da História. (Teremos de ocupar-nos a sério desta questão. A História é essencial para sabermos donde vimos e quem somos.) Mas mesmo no meu tempo de estudante, em que, creio, tínhamos bom ensino de História desde a escola primária e, na via que segui, até ao 7.º ano do liceu (hoje, 11.º/12.º), creio que não era dada a D. Dinis a importância que merece.
A ideia que guardo da minha juventude era a de D. Dinis ser um rei importante, mas um rei como os outros da primeira dinastia, onde se destacava sobretudo D. Afonso Henriques, que nos fundou, e seu filho D. Sancho I, o Povoador. O D. Dinis que fui aprendendo foi por leituras ao longo da vida, que me permitiram conhecer e compreender, já mais desperto e informado, o carácter estratégico, profundamente estratégico, de medidas que tomou. Há algum tempo que gostava de escrever sobre D. Dinis, para lhe fazer a justiça que, no meu caso, tardou. Faço-o hoje, nesta coluna dedicada aos 900 anos de Portugal: D. Dinis é um dos grandes reis de Portugal – certamente, nestes nove séculos de História, um dos maiores e de marca mais duradoura.
Da aventura à edificação
D. Dinis nasceu em 1261, tinha o Reino de Portugal pouco mais de um século de existência. Foi o nosso 6.º rei. Teve um reinado longo de quase 46 anos, entre 1279 e 1325, quando, com 63 anos, morre em Santarém. O seu reinado inicia-se apenas um século depois da bula Manifestis probatum do Papa Alexandre III, que consagrou internacionalmente a independência de Portugal, sendo rei D. Afonso Henriques, o grande fundador. Noutro olhar, começou a reinar século e meio depois de, pela batalha de S. Mamede, o trisavô ter resgatado de sua mãe, D. Teresa, o governo do Condado Portucalense, de onde surgimos. O reino era de fresca data. A tarefa de D. Dinis foi consolidá-lo em mais sólidas bases, consistência e envergadura. Conseguiu-o.
O cognome que uso no título deste artigo está em modo de provocação, para chamar a atenção para a sua efectiva grandeza. Mas nem ele fora guerreiro como os soberanos a que o título coube (como Alexandre ou Frederico II), nem ele era pomposo para o reclamar. A grandeza de D. Dinis não foi da guerra, nem da vaidade, mas da arte de governar e de organizar o Reino. O cognome mais conhecido de D. Dinis, “o Lavrador”, diminui muito o entendimento do que foi o seu governo. Ainda por cima, este cognome é frequentemente associado ao Pinhal de Leiria – assim aprendi na escola –, quando, por um lado, este não é lavoura, mas floresta e, por outro lado, já fora começado por Sancho II ou Afonso III, respectivamente tio e pai de Dinis. O outro cognome, “o Rei Trovador”, é mais característico, por apelar a um mais raro e singular lado artístico, embora igualmente redutor face à ampla imensidão política do seu reinado.
D. Dinis herdou do pai o território continental de Portugal já plenamente definido na sua extensão. Afonso III concluíra a conquista do Algarve em 1249 (nomeadamente, Faro, Loulé e Albufeira) e assinara com Afonso X, de Leão, o Tratado de Badajoz, em 1267, por que ficou definitivamente estabelecida a sua posse, fixando, no Algarve, o Guadiana como linha de fronteira com Leão e Castela. Por isso, D. Dinis foi o primeiro rei da primeira dinastia que não teve de preocupar-se com a Reconquista: ela estava terminada pelo nosso lado. Pelo lado de Castela, só terminaria em 1492, duzentos anos depois.
O território: organizar, povoar, produzir
A obra de governo de D. Dinis cuida nada mais, nada menos do que de quatro pilares estratégicos de Portugal: o território, a identidade, o mar, a língua. E quanto ao território – que, hoje tão maltratado, é dos mais preciosos recursos estratégicos do país –, o rei abordou-o coerentemente em diferentes ângulos, como deve ser: a fronteira, a produção, o povoamento, a organização.
De facto, embora não tivesse de prosseguir conquistas, ainda havia fronteira a definir. É D. Dinis que, através do famoso Tratado de Alcanizes, em 1297, conclui a definição da nossa fronteira oriental com o Reino de Leão, desde as chamadas terras de Ribacôa, na região da Guarda, até ao Alentejo – pelo lado leonês, outorgou Maria de Molina, regente, em representação de seu filho Fernando IV, ainda criança de tenra idade. Foi este tratado que fixou a titularidade portuguesa de Campo Maior, Olivença, Ouguela e Juromenha, a sul, e Alfaiates, Almeida, Castelo Bom, Castelo Melhor, Castelo Rodrigo, Sabugal e Vilar Maior, mais a norte. Para os nossos vizinhos foram reconhecidos e entregues os direitos relativos a Arouche, Aracena, Aiamonte, Esparregal (em Santiago de Alcântara), Ferreira de Alcântara e Valença de Alcântara, além de outras praças e lugares nos Reinos de Leão e de Galiza. Uma nobre peça de bom governo e melhor diplomacia.
Impressiona, por outro lado, a vasta e coerente obra de organização territorial que desenvolveu. Ordenou várias inquirições, esclarecendo o património. Outorgou dezenas de novos forais e confirmou outros, num total de mais de uma centena, sobretudo no interior e no sul. Incentivou a agricultura, atribuindo aos camponeses terras para cultivo, com regimes diferentes consoante as regiões do país – nomeadamente, Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes e Estremadura –, certamente para, assim, os adequar às características dos povos e seus costumes e tradições. Estimulou o comércio interno, desenvolvendo as feiras, em especial as feiras francas, com privilégios e isenções para as respectivas povoações. E explorou minas de cobre, estanho, ferro e prata, de que exportávamos para outros reinos europeus. Em resumo, seguiu uma política de povoamento sustentada pelo desenvolvimento da economia de base e por uma organização administrativa de proximidade. Percorreu várias vezes o país de uma ponta a outra. Dir-se-ia estarmos perante um governante moderno; ou, olhando bem, um governante melhor que os modernos.
Aos estudiosos, ou apenas curiosos, aconselho a leitura ou a consulta de uma tese de Mestrado, apresentada em 2008, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que contém exaustiva e rigorosa apresentação dos forais de D. Dinis, incluindo vários mapas com a localização respectiva, assim como a sua sistematização noutros mapas e tabelas finais, tudo completado pela contextualização na situação e nas políticas seguidas pelo rei. É um estudo muito interessante e completo. Trata-se da dissertação «‘O Lavrador’ de forais – Estudo dos forais outorgados por D. Dinis», da autoria de Alexandre Manuel Monteiro Pinto, sob orientação da Prof.ª Maria Helena da Cruz Coelho.
O espírito, o mar e a nossa língua
Cuidou também do conhecimento e do saber, e da identidade portuguesa, ao fundar, em 1290, aquela que é, hoje, a Universidade de Coimbra, uma das mais antigas universidades europeias. Cuidou do mar, criando em 1312 uma organização permanente da Marinha Real, para cujo comando chamaria, poucos anos depois, a figura que ficou famosa: o Almirante Manuel Pessanha ou Emanuele Pesagno, genovês e experimentado. E intuiu a importância política da língua, ordenando, também em 1296, o uso exclusivo da língua portuguesa nos documentos oficiais – por exemplo, no estudo acima citado de Alexandre Monteiro Pinto, vemos que os forais dados por D. Dinis estavam escritos em latim até 1284; ora em português, ora em latim, com prevalência para o português em 1285-1292; e sempre em português a partir de 1293.
Estas duas últimas medidas de D. Dinis são cruciais para o futuro de Portugal. Até hoje. A Marinha fortalece a capacidade defensiva do país e permite atacar portos muçulmanos no norte de África, de onde vinham por vezes ataques dos mouros que chegavam até à costa portuguesa do Oeste. Anos depois, já no reinado de Afonso IV, a expedição portuguesa às Ilhas Canárias antecipa o que viriam a ser os Descobrimentos. E, em 1383-1385, na crise do Interregno, a Marinha teve operações importantes na Galiza e para derrotar o cerco castelhano a Lisboa. Por seu turno, a oficialização da língua portuguesa construiu o tronco de um Estado-língua, para muitos historiadores o factor crucial na afirmação da nação e consolidação do Estado, ou seja, para o triunfo de Portugal. E, a partir do século XV, navegando por todo o mundo nas nossas naus, a nossa língua semeou-se, tornando-se universal, no que, hoje, chamamos a lusofonia.
Guerra e a paz, a Rainha Santa e o trovador
Nem as guerras com o irmão Afonso e, depois, com o filho-herdeiro, o futuro Afonso IV, por causa de rivalidade com o meio-irmão Afonso Sanches, chegam para tirar brilho ao reinado notável de D. Dinis. Um reinado ainda mais abrilhantado pela figura da Rainha Santa Isabel, vinda de Aragão e a quem se deve que o conflito armado entre pai e filho, que chegou à guerra civil, não se tornasse catastrófico e a paz acabasse, enfim, por se impor. Seria canonizada por Urbano VI, em 1625, três séculos depois do fim do seu reinado, pela morte de D. Dinis.
Fez mais em frentes políticas de grande relevo: criou a ordem militar de Cristo, onde se acolheram os templários portugueses; e não só pacificou as relações com a Santa Sé e a Igreja, completamente entornadas no reinado do pai, Afonso III, como concluiria uma Concordata em 1289.
Outro rasto imortal de D. Dinis é a veia poética, um talento com continuidade em dois filhos seus. Um talento que expressou em mais de uma centena de cantigas medievais de todos os géneros (de amigo, de amor e de escárnio e maldizer), que fazem dele uma figura inapagável da nossa literatura, como expoente da arte trovadoresca:
«- Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?»
O seu mais recente biógrafo é o Prof. José Augusto Pereira de Sotto Mayor Pizarro, cujo livro “D. Dinis”, na Temas e Debates, não posso deixar de recomendar.
À beira do 7.º centenário
D. Dinis é um dos nossos reis que mais merece todas as lembranças e homenagens dentro da celebração dos 900 anos de Portugal. Penso ser daqueles a que mais devemos Portugal não ter ficado uma efémera aventura medieval e se tornasse no mais antigo reino da Península, actualmente como república.
Teremos ocasião de, dentro de um mês, o evocar no 7.º centenário da sua morte, ocorrida em Santarém, em 7 de Janeiro de 1325. É uma grande inspiração, a iniciar o ano de 2025, em que iremos a Zamora, em 8 de Junho, abrir as portas do 9.º centenário de Portugal. Até nesta coincidência os exemplos e os destinos de D. Afonso Henriques e D. Dinis parecem intimamente ligados e guiados pela mesma estrela.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]