Muitos acharam normal, eu não achei: o primeiro-ministro de uma democracia não chama os jornalistas para a sua residência oficial para fazer a sua defesa num caso judicial. E muito menos dá a essa defesa um cunho tão pessoal, mas mesmo tão pessoal que vai ao ponto de ter a seu lado a sua esposa (e não, não se trata meramente de uma questão de carinho).

Eu sei que a maior parte dos meus concidadãos provavelmente não considerarão este tema relevante, mas para mim é definidor, porque para mim aquilo que define uma democracia não são os seus protagonistas, ou os seus resultados, são as suas regras e as suas instituições. E as instituições, seja uma moradia em São Bento ou um Banco na Baixa de Lisboa, não existem para servir esta ou aquela maioria, existem para assegurar que a vontade presente e futura dos portugueses é ouvida e respeitada.

Este detalhe é importante, eu diria mesmo crucial: a democracia não é o império da maioria, a democracia não é o regime em que o governo da maioria pode fazer tudo o que a maioria desejar, a democracia é o regime em que está sempre assegurado que um governo hoje maioritário pode ser amanhã minoritário.

Por isso é que os nossos governos, os nossos ministros e primeiros-ministros, mesmo em dias de maioria absoluta, não podem fazer aquilo que muito bem entenderem mesmo que digam agir “em nome do povo” e com “mandato maioritário” – é o princípio do “governo limitado”, uma regra de ouro de qualquer democracia. Por isso é que a Justiça não depende do poder executivo. Por isso é que, além das instituições da Justiça, devem existir muitas outras instituições independentes, nomeadamente os reguladores, com mandatos desencontrados, e que tratam de garantir que as regras do jogo não são viciadas por quem, transitoriamente, ocupa a cadeira do poder.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É também por isso que mesmo fins aparentemente nobres – vamos supor que era isso que estava em causa nos investimentos que estão a ser investigados – não autorizam atropelos à lei nem favorecimentos em nome de um invocado “interesse nacional” ou “vontade política”.

Nos últimos dias assistimos a várias violações grosseiras destes princípios.

O primeiro foi o anúncio, por António Costa, de que o nome que tinha indicado ao Presidente da República para eventual primeiro-ministro de um novo governo apoiado pela actual maioria socialista era o de Mário Centeno, governador do Banco de Portugal. Sim: o nome do governador em funções.

Mário Draghi, antigo governador do Banco de Itália, ocupou a cadeira de primeiro-ministro mas num tempo em que já tinha abandonado as suas funções e fê-lo à cabeça de um governo tecnocrático. Não há pois precedente para esta ideia de ir buscar para primeiro-ministro o governador de um organismo que se define como independente – mais: não há precedente para a promiscuidade disto tudo, já que Mário Centeno saltou directamente da cadeira de ministro das Finanças para a cadeira de governador, na cadeira de governador nem sempre actuou com a discrição que se recomendaria (recordo o singular “artigo de opinião”, apresentado como “análise”, que publicou recentemente) e, por isso, fico a aguardar a avaliação da comissão de ética do Banco de Portugal.

Num país onde existisse uma noção clara da importância de instituições independentes Mário Centeno não seria governador do Banco de Portugal e o primeiro-ministro não acharia que podia continuar usá-lo como trunfo político.

Mais grave contudo foi o que aconteceu sábado à noite, quando a residência oficial do primeiro-ministro foi transformada em auditório para o próprio encenar a sua defesa no processo judicial que se avizinha – para o próprio, no fundo, nos transmitir a “sua verdade” (gosto desta expressão assassina que o próprio Costa usou para espetar uma faca nas costas do seu antigo camarada José Sócrates, na altura detido na prisão de Évora).

Não se duvide: não assistimos ao acto normal de um governante, assistimos a um ataque às investigações judiciais com base na ideia, e cito o ainda primeiro-ministro, de que “os futuros governos têm de ter liberdade de acção política para prosseguir estratégia legítima” sufragada pelos eleitores.

Não é isso que está em causa – o que está eventualmente em causa são abusos de poder na acção política, são práticas de tráfico de influências, são pressões ilegítimas sobre responsáveis da administração pública, são hábitos de promiscuidade entre o mundo do negócios, o mundo da advocacia e o mundo da política. Não têm de ser necessários atalhos para contornar as leis quando há que fazer avançar pequenos ou grandes investimentos, pois é isso que discutimos.

A legalidade e o estado de direito não podem estar subordinados a princípios de oportunidade política ou a preferências por este ou aquele grande investimento.

Finalmente, usar o palco que usou para atirar aos lobos aquele que era até há poucos dias o seu principal colaborador, Vítor Escária, e tratar com um brutal “chega para lá” o seu amigo de sempre, que agora deixou de ser “o seu melhor amigo”, apenas confirma a ideia de que, na política, não se fazem reféns, antes se executam amizades em nome do mais frio cálculo de oportunidade.

O comportamento de António Costa nos últimos dias tem sido mais do que lamentável – tem sido um evidente sinal de que não respeita as instituições democráticas, não acredita na independência dos reguladores, que continua a achar que os fins justificam os meios, sobretudo se esses fins passarem pela manutenção do PS no poder (pela ocupação pelo PS do poder, pois é isso que conta).

Não sou o primeiro a dizê-lo, mas nunca pensei fazê-lo: nem Sócrates foi tão longe, e sei que Costa não é comparável em tudo o mais com Sócrates. Mas quando, a alguns meses de celebrarmos os 50 anos do 25 de Abril, assistimos em Portugal a comportamentos destes, quando escutamos comentários que não condenam a anormalidade destes comportamentos, antes os defendem, algo fica claro: se é verdade que Portugal é uma democracia, é também verdade que a nossa cultura democrática e institucional deixa demasiadas vezes muito a desejar.