Encontrava-me há uns anos numa agência bancária (não era o Novo Banco) a aguardar uma reunião. Na mesa da sala de espera existia um folheto do banco com algumas fotos e o preço de vários imóveis. Difícil era escolher o mais horrível. Pelo seu absurdo, reparei em especial num armazém em sítio obscuro de Odivelas, que o banco se propunha vender por dois milhões de euros. Apesar de nada me interessar a compra de armazéns, a simples existência do folheto com tais preços era algo de ofensivo, como se fosse uma espécie de gozo sobre os clientes. Não resisti a questionar o gerente de conta. A resposta foi simples: o banco não podia publicitar a venda por menos que esse (absurdo) valor, ao qual eu não deveria dar importância, mas se fizesse uma oferta, depois me responderiam. Com a natural discrição bancária, pouco mais me explicou, mas a situação era evidente. O banco havia tomado o armazém como garantia de um empréstimo, certamente de valor próximo. O empréstimo não foi pago e o banco pretende manter aquilo como um activo no seu balanço, para não ter de provisionar e levar a prejuízo. Enquanto se mantiver no balanço como “vendável” por aquele preço, é um activo, embora um activo da treta. Fiquei convencido que se alguém pagasse 100.000 euros por aquele mono, era seguramente vendido nesse dia. Provavelmente nunca ninguém o fez.
Vai daí, certamente aquele mono foi mais tarde incluído num “pacote” de vários imóveis, alguns de boa qualidade, de modo a que quem quisesse comprar o bom, tivesse que levar o lixo. Quando a Comissão Parlamentar de Inquérito ao Novo Banco (CPI) vier a verificar os tais “pacotes” de venda de imóveis, aqueles que se diz foram vendidos abaixo do preço de mercado, vai encontrar muito deste lixo misturado com imóveis ou apartamentos de luxo. Desconstruído cada “pacote”, claro que alguns dos melhores imóveis até foram vendidos abaixo do “valor de mercado” (seja lá o que isso for quando estamos a falar de imóveis), mas também se despachou em conjunto com isso o lixo que ninguém compraria isoladamente, esse sim seguramente vendido a preço irrisório, que é no fundo, o preço que merece. Feitas as contas, ficará sempre por saber se foi bom ou mau negócio. O resto será simplesmente luta política.
Não espanta que estes negócios, feitos aliás por todas as entidades bancárias que querem vazar as desgraças dos balanços, sejam objecto de escrutínio quando o Banco que as faz é coberto nos seus prejuízos com os impostos dos cidadãos. Noutras entidades que não o são, o bom ou mau negócio é um assunto apenas seu e dos seus acionistas. Não é o caso do Novo Banco.
O que espanta realmente é ainda hoje, quase uma década depois, não se saber quem foram os gerentes e directores bancários que promoveram estas operações; quem foram os avaliadores dos imóveis; quem pertencia aos conselhos de crédito que as aprovaram e quem foram os beneficiários de tão generosas ofertas. Já agora, qual a situação profissional e patrimonial desses fantásticos profissionais? Estão mais pobres, mais ricos? Mantêm-se como avaliadores de património ou foram vender roupa para a feira de Carcavelos? Certamente o valor atribuído a cada “armazém de Odivelas” não foi submetido pessoalmente ao Dr. Ricardo Salgado para aprovação.
E quem decidiu que este lixo herdado faria parte do “Banco Bom” (o Novo Banco) e não transitaria desde logo em 2014 para o Banco Mau (a massa falida do BES)? Foi o Banco de Portugal? Foi o governo da época? Quem? Que interesse tem agora, saber apenas se a Lone Star anda a ganhar dinheiro com isto — claro que ganha, ou estaria noutras paragens – se as pessoas que estão na origem de todo este escândalo — da administração ao conselho de crédito, dos directores aos gerentes das agências, dos primos aos amigos — continuam sem ser ao menos conhecidas. É certo que a maior parte, nenhuma punição sofrerá — à excepção da vergonha pública — pois irão sempre dizer que se limitaram a cumprir ordens, mas não é isso que dizem 99% dos infractores do que quer que seja?
Os créditos irrecuperáveis têm diferentes causas, todas hoje sobejamente conhecidas da generalidade dos cidadãos: a) financiamento de obras inúteis, inviáveis e desnecessárias, cujo único interesse era o recebimento de comissões por quem as promovia, fossem estes comissionistas, membros do governo, directores bancários, membros de entidades publicas ou outros (está tudo em investigação, talvez os nossos netos possam um dia saber algo sobre isto); b) financiamento a grupos empresariais fantasmas sem qualquer consistência patrimonial e que continuam, a maior parte deles, em actividade com outras designações, como se fosse absolutamente normal que os contribuintes tenham de pagar os seus falhanços; c) financiamentos concedidos com garantias hipotecárias de bens sobreavaliados (uma autêntica promiscuidade entre amigos, parentes e associados de agremiações discretas); d) pagamento de prémios aos fantásticos gestores destas instituições e destes fiascos, aos quais, que se saiba, ainda não foi pelo menos pedida a respectiva devolução.
Mas a cereja em cima do bolo está ainda para vir. Se tiverem tempo para isso, não se esqueçam de anotar quantos daqueles que enterraram o BES vão ser exactamente os mesmos que irão beneficiar dos fundos comunitários da dita bazuca. Dirão, como de costume, que não há outros “empreendedores” no país. Ao invés do romance de Fiódor Dostoievski, aqui teremos um crime sem castigo.
A CPI ao Novo Banco vai pelos vistos ocupar-se dos acontecimentos na instituição posteriores à Resolução bancária. Não que isso seja menos importante, mas, se nos é permitido, o problema é anterior e sobre esse passado está a usar-se a habitual esponja. Se a conclusão for que, afinal, o mal todo é do contrato e dos abutres da Lone Star, o branqueamento dos factos será total. Claro que os abutres são necrófagos e até ajudam a limpar o ambiente. É a sua função na natureza e também no capitalismo. Resta saber quem é que lhes deixou o cadáver.