Vamos ser honestos: a família Mesquita Guimarães, de Famalicão, não faz as coisas como por cá é costume. Em Portugal, temos a manha dos fracos. Perante um abuso do Estado, o instinto raramente é o do confronto. Aquilo que os americanos celebram em filmes – o indivíduo que, por uma questão de princípio e contra as suas próprias conveniências, desafia o sistema estabelecido ou a opinião dominante — é-nos bastante estranho. Nunca acreditámos  na história de David e de Golias. Pequenos e fracos, preferimos perceber onde estão as escapatórias, ver como se pode dar um jeito.

A esse modo ínvio de viver, junta-se a descrença e o cinismo com que sempre recebemos tudo o que nos querem ensinar, sobretudo na escola. Nunca levámos a sério nem catequeses, nem aulas. Por alguma razão, o menino Tonecas tem feito sentido para várias gerações desde 1934. Talvez por isso, a escola do Estado Novo não nos fez corporativistas, nem a escola do PREC, que eu próprio tive de sofrer, nos fez marxistas. Lembro-me dos livrinhos de Marta Harnecker, na disciplina de Estudos Sociais (era este o nome?), sobre os horrores do “modo de produção capitalista”. Alguém, num quartel ou num ministério (eram então a mesma coisa), esperou vacinar-nos assim, aos doze anos, contra o capitalismo. Cinco anos depois, andávamos todos no liceu com autocolantes da AD.

Por tudo isto, talvez muita gente tenha pensado, acerca da resistência da família de Famalicão: mas valerá a pena? Não seria melhor os miúdos fingirem que aprendiam aquilo, passarem de ano, e esquecerem tudo depois? Para quê levar as coisas tão a sério? Para isto, que as alegações do Ministério Público tornaram muito claro: para sabermos em que regime vivemos realmente. Sim, a manha e o cinismo, ao pouparem-nos a chatices, poupam-nos também à realidade: à realidade da nossa fraqueza, e à realidade da violência do poder. A família Mesquita Guimarães expôs a brutalidade de que o sistema é capaz quando alguém se atreve a desafiar frontalmente os seus caprichos ideológicos, em vez de apenas os tourear manhosa e cinicamente. Eis o que vimos esta semana: a teoria paranóica de que os pais são “perigosos”, e a ameaça irritada de nacionalização das crianças.

Este é o mesmo Estado que em Setúbal nada fez para proteger uma criança verdadeiramente abandonada e em perigo, mas que em Famalicão tudo se propõe fazer para “proteger” jovens saudáveis e educados contra os pais que deles têm cuidado exemplarmente. O Estado social mostrou que em Portugal é fundamentalmente um Estado sectário, para o qual a prioridade não é o bem estar, mas a ideologia. Em nome da tolerância, dizem eles? Pois também a esse respeito a diatribe judicial é reveladora. Segundo o Ministério Público, os jovens, por não frequentarem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, correm o risco de serem alvo de violências (bullying) por parte dos seus colegas que têm aproveitamento na dita disciplina. A pergunta é aqui óbvia: mas não é suposto a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento ensinar aos jovens que agredir quem tem outras opções é uma coisa feia? Para que serve então?

Temos de agradecer à família Mesquita Guimarães ter feito este Estado exibir sem pudor a intolerância que infesta as suas instituições. Só poderia ser assim, quando se tenta ensinar, como se fosse um conhecimento científico ou uma sabedoria consensual, o que não é científico nem consensual, mas simplesmente a ideologia de uma seita, agradável para uns, ofensiva para outros. A maioria de nós, perante as escolhas ideológicas do Estado, rir-se-á à socapa, estudará para o exame, e tratará de esquecer tudo depois. Como aqueles que, quando o Estado tinha confissão religiosa, recomendavam que se fingisse a fé, para tratar da vida. Ainda bem que nem todos somos assim. Talvez um dia percebamos que, tal como em tempos fez sentido separar o Estado e a religião revelada, faz agora sentido separar o Estado e a religião woke.

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