Um professor fez uma caricatura má de António Costa; António Costa fez uma caricatura muito pior do professor. O professor distorceu, sem grande imaginação, a fisionomia de António Costa; António Costa distorceu, com excessiva malevolência, as intenções do professor. A acusação de racismo, com a actual legislação e na actual cultura, é muito grave: expõe os denunciados ao estigma social e ao processo-crime. António Costa, porém, não hesitou em dar a entender que os professores, com os seus cartazes, o visavam porque uma parte da sua família é originária da antiga Índia Portuguesa, e não por causa do tempo de serviço que perderam durante o congelamento das carreiras. Como se, caso a família paterna do primeiro-ministro tivesse vindo, digamos, da Finlândia, aos professores nunca tivesse ocorrido exigirem a contagem desse tempo. António Costa foi simultaneamente pérfido e absurdo.

Entendamo-nos: António Costa tem todo o direito de não apreciar o tipo de assédio que noutros tempos as esquerdas promoveram contra governos da direita. Tem também o direito de ser tratado com respeito, tal como tinham os ministros que, entre 2011 e 2015, as esquerdas nunca respeitaram. Mas António Costa tem também deveres. Um deles é o de manter a compostura de Estado, mesmo quando à volta dele os outros perdem a cabeça. Mostrar contenção não é uma simples questão de dignidade pessoal, é uma fundamental responsabilidade política. António Costa não esteve à altura, quer ao entrar na gritaria, quer ao puxar do cartão racial da ideologia woke.

Como seria de esperar, o primeiro-ministro teve logo à sua volta um batalhão de comentadores dispostos a tratá-lo como vítima genuína de “ódio racial”. A internet transborda de caricaturas de Donald Trump como porco (googlem “trump pig”). Também é racismo? A superstição woke, porém, tem resposta para isto: desde que uma pessoa tenha certa história familiar ou cor de pele, pode definir como racismo tudo o que lhe acontece. Há aqui uma obscenidade, e uma ameaça. A obscenidade é alguém que tem sido tudo em Portugal e que no passado disse e repetiu nunca ter sido discriminado, comparar-se de repente àqueles que, privados de direitos e de recursos, foram de facto excluídos e perseguidos por causa das suas origens ou da cor da sua pele. A ameaça está na tentação da oligarquia socialista de usar a ideologia woke importada da América para demonizar críticos e inibir debates.

Tudo isto nos deixa mais uma vez perante o grande mistério da política portuguesa. O governo socialista tem uma maioria absoluta, tem o BCE, tem o PRR, tem as televisões, e tem até às vezes o presidente da república. No entanto, parece terrivelmente intranquilo. Porquê? Por causa da paranóia inerente a quem tudo gostaria de controlar? Ou porque, de facto, já não acredita que tudo isto vá acabar bem? Esta semana, um estudo confirmou que os diplomas de licenciatura valem cada vez menos no mercado de trabalho. As qualificações académicas foram o grande caminho que este regime apontou às famílias para melhorarem de vida. Esse caminho leva cada vez menos longe numa economia cuja dinâmica se reduz ao turismo e que, ao contrário do que o governo diz, verdadeiramente não converge. Temerá o governo a ressaca das expectativas frustradas? Estará, como último recurso, tentado a refugiar-se na criminalização de toda e qualquer contestação? Na Rússia, todos os opositores de Putin são, só por isso, “nazis”. Vai a oposição ao poder socialista em Portugal passar a ser “racista”? Tudo isto é ao mesmo tempo sinistro e ridículo, como os pesadelos.

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