Antes de ir para férias juro que as notícias eram sobre as urgências que não funcionavam, umas escassas semanas fora e no regresso constato que a notícia agora foca-se nas urgências que funcionam: “Urgência de obstetrícia e bloco de partos assegurados na Maternidade Alfredo da Costa e São Francisco Xavier. A Maternidade Alfredo da Costa e o Hospital São Francisco Xavier atualizaram as escalas do serviço de urgência de obstetrícia e ginecologia e do bloco de partos, garantindo o seu normal funcionamento no fim de semana.” Temos de convir que isto sim é realmente uma mudança estrutural no SNS: notícia é quando funciona! Realmente até agora governo algum tinha conseguido uma alteração deste nível.

Inerente a esta mudança é o facto de termos deixado de nos indignar com o que não funciona ou funciona mal no SNS, mas sim com as pessoas, porque são as pessoas que não sabem usar o SNS, não o SNS que não atende pessoas. Assim a primeira regra do novo SNS é precisamente essa: não é o SNS que falha mas sim as grávidas que não sabem como recorrer a ele, nomeadamente não sabem usar a informação contida no portal, coisa que em alguns casos se revela mais difícil que um parto propriamente dito.  Por exemplo, uma grávida que resida na área do Hospital Garcia de Orta, em Almada, tem de ser uma especialista em enigmas. Esta semana, no muito recomendado portal da saúde, o horário de funcionamento do Bloco de Partos daquele hospital passa directamente das 8 horas de sexta para as 8 horas de segunda. O que fazer caso se entre em trabalho de parto no sábado ou domingo? Ou às seis da manhã de segunda-feira? Ir ao hospital mais próximo pode não ser necessariamente a resposta certa.

O caso da parturiente de Vila de Rei que acabou a ter um nado morto é exemplar de como nestas situações de falhanço do SNS  a culpa pode acabar a ser transferida para os seus utentes, no caso concreto dos partos, as mulheres:  a parturiente de Vila de Rei ora é culpada por se ter dirigido à urgência de Santarém e não à de Abrantes, que tanto quanto se percebe não estava a funcionar, ora por ter ido pelos seus próprios meios para o hospital e não de ambulância ou mais bizarramente ainda por durante a gravidez ter sido seguida em consultas no sector privado, como se isso fosse um pecado. Para quem não sabe, antes do socialismo ter escavado o SNS, milhares de mulheres optavam por ser seguidas em consultas no sector privado e depois iam ter os seus filhos nas maternidades públicas que eram consideradas mais seguras. Agora as grávidas para não serem culpabilizadas se algo correr mal devem fazer prova da sua fé no SNS não indo sequer a uma consulta de ginecologia\obstetrícia no privado.

Para quem não sabe, também  há algumas décadas a discussão em torno dos partos girava em torno da presença do pai durante o parto (na verdade, não sei se será a melhor companhia mas essa é outra questão) e sobretudo sobre o parto sem dor. Havia cursos de preparação para o parto sem dor (o mais eficaz que conheci ficava no segundo ou terceiro andar de um velho prédio lisboeta, logo as grávidas subiam pelo seu pé vários lances de uma longa escada, exercício que muito deve ter contribuído para os bons resultados do dito curso!) e os jornais enchiam-se com testemunhos de mulheres que garantiam ter tido filhos a cantar, outras a rir e outras ainda sob o antigo anátema do “parirás com dor”. Agora, numa reviravolta da História, as meninas nascidas em tão bonançoso ambiente são a geração de grávidas que andam de olhos postos num portal para saber onde podem ter os filhos. (Também são a geração que não pode dizer que só as mulheres engravidam e que só as mulheres dão à luz mas esse é um outro aspecto desta nossa marcha para a estupidificação geral.)

Quem nos havia de dizer que depois do parirás com dor viria o parirás onde o SNS deixar, nos dias que lhe convier e às horas previstas nas escalas de serviço. Somos o que se pode dizer uma sociedade a caminho do socialismo: o Estado falha mas tem sempre razão.

PS. O acesso às Berlengas tornou-se um imbróglio. Começa por ter de se abrir uma conta num portal e depois indicar os nomes, número de cartão de cidadão, NIF, telefone… dos candidatos a visitantes. Se se viaja com crianças não se pense que basta dizer que são duas ou três. É preciso dar os dados. Para mais, a associação que gere o Forte de São João Baptista não comunica com a entidade que gere o Berlengas Pass e portanto pode ter-se uma reserva confirmada para pernoitar no forte mas não conseguir sequer chegar à ilha nos dias dessa mesma reserva, caso já tenha sido ultrapassado o número diário de visitantes autorizados. Os reis das Berlengas afinal existem: chamam-se burocratas.

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