Um pouco como tudo o que faz girar verdadeiramente a Criação, o gentil farfalhar das folhas secas das mais viçosas árvores do ser humano passou desapercebido. Como um leve sopro que levantava tais folhas depois de serem pisadas, a canonização, a 12 de Julho deste ano, de um dos maiores teólogos do século XX pela comunidade Ortodoxa Romena (cORo) pouco ou nada disse a quem quer que fosse.

Este mesmo texto, escrito sem agonia ou sacrifício na forma, pouco alterará isso. Sei-o. Poucos o lerão. Poucos gostarão de o ler e os comentários ao mesmo ou serão inexistentes ou, geralmente vindos de quem não sabe que o ateísmo é endogenamente homicida, apenas vincarão o ódio pelo que escreverei. Seja.

Dumitru Stăniloae (1903-1993)… “Ah… Stăniloae… o Professor”, como lhe chamam as pessoas romenas no seu país e na diáspora quando se pergunta acerca dele. Sim: Professor, em Sibiu e em Bucareste, mas igualmente sacerdote, esposo e pai, reduzido, nos últimos anos da sua vida, a viver e a trabalhar em dois pequenos e decrépitos quartos com a sua família. Quem o conheceu sempre disse que isto foi o essencial da sua vida. Acredito perfeitamente nisso.

Todavia, ele foi bem mais do que isso. Também foi um teólogo de valor incomparável (se é que se pode comparar pessoas). De um lado, na linha de uma feição neo-palamita aberta à patrística, que o fezr ecuperar, para o primeiro plano de onde nunca deveria ter saído, a teologia e a filosofia de Máximo o Confessor, bem como traduzir a totalidade da “Philokalia” e diversas obras dos mais relevantes Padres da Igreja.

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De outro lado, uma linha de abertura franca à modernidade e à ocidentalidade, dialogando sobretudo com Boulgakov, Vycheslavtsev, Peterson, Lossky, Brunner, Meyendorff, Clément, Küng e (no âmbito da teologia) e com Berdiaev , Buber, Scheller, Ebner, Marcel, Heidegger, Mounier,  Laplantine e Horwitz (na esfera da filosofia). É daqui que surgem as suas duas volumosas operae magnae: “Teologia Moral Ortodoxa” (preâmbulo para o capital “Espiritualidade Ortodoxa”) e “Tratado de Teologia Dogmática Ortodoxa”.

Mas não só. Stăniloae, enquanto redator e editor de duas das mais prestigiadas revistas romenas (“Telegraful român” e “Gindirea”), ainda se viu pressionado, mas dando toques ardilosos de contestação ao que ele mesmo redigia, pela censura fascista a escrever o que não queria. Eis os Troianos. Agora os Gregos: dando voz contra a subserviência à URSS e às suas ações tentaculares desumanas, foi preso político durante o regime comunista, então presidido por Gheorghe Gheorghiu-Dej, entre 1958 e 1963. Mas a fidelidade a Cristo esteve sempre acima desses opositores homéricos.

Somando a isto outras obras marcantes (“Deus é Amor”, “Teologia e a Igreja”, “O Génio da Ortodoxia” e, i.a., “A Eterna Face de Deus”), este autor nascido na Transilvânia é daqueles cujo desconhecimento não é um crime. É um atentado ao amor. É uma ferida na humanidade. É um rasgão na cultura geral – em alguns âmbitos de modo intencional, em especial por Stăniloae defender a imediatez da experiência e da perceção de Deus (algo só negado por quem do Deus-Amor só conhece o que os indevidos miasmas académicos dizem).

Talvez agora, que o Santo Sínodo da cORo decidiu pela sua canonização enquanto “confessor da fé”, este grande homem possa iluminar uma teologia de felizes encontros e dolorosos desencontros; de humildade sincera e de repúdio ao orgulho acintoso; de alegria no amor e de aversão à promoção por alavanca. Nunca contra ninguém, sempre em favor de todos. Uma atitude vital à imagem da teologia de Stăniloae, sempre cauto com um ecumenismo que fosse sinónimo de catolicização ou amorfia emocional (algo promovido, a seu ver, pelos Patriarcas de Constantinopla Atenágoras I e Demétrio I) e, daí, a favor de uma sadia da identidade romena (mormente eclesiológica) com âncora em Cristo Universal.

Muito terá a Roménia a ver com o temperamento dessa teologia: país de herança latina, mas firmemente ortodoxo; país na charneira entre o Ocidente e o Oriente; etc. Mas é mesmo aquela ancoragem em Cristo, cuja natureza humana não conhece limites por ser a de uma Pessoa divina, que faz de Stăniloae ser o modelo do equilíbrio entre a ação e a contemplação numa asserção de um Cristianismo cósmico em que a ascese, associada ou não à prece clássica do hesicasmo, sucede às sementes de uma divinização que é a sua meta.

E isto tudo, numa Igreja entendida, justamente, como uma espécie de laboratório de ressurreição que atrai para si tudo o que aquilo na Criação não for antagónico ao amor. Tudo é tudo, mesmo tudo, mas em especial um ser humano amante, desapegado de si e orante numa existência que se faz relação pessoal num apofatismo das palavras no seio de uma significação espiritual da mencionada Criação. Transfiguração cósmica operada por Deus-Trindade ante o niilismo fátuo que, se nos hoje corrói de todo o lado, no tempo de Stăniloae corroía do interior.

Daí a kénosis de que não cessa de falar. A humana e a de Deus-Filho, certamente, mas especialmente aquela que ocorre continuamente nos corações divinos, marcando a eternidade como a ausência de hiato na resposta de amor ao amor dado e o tempo como o dom para o ser humano se tornar um ser logikós; isto é, um ser segundo a lógica da sua essência enquanto imagem semelhante de Deus.

Essência lógica, sim, contudo nada de frieza ou de distanciamento divino-humano (no que impediriam a Igreja de ser o canal privilegiado do amor divino), antes energia, abertura e espiritualidade cada vez mais profundas, mas sem se cair no engulho de um pensamento inautêntico e objetificador de Deus, para, permanecendo tal pensamento rigorosamente humano, receber uma capacidade de consciência infinita.

Mas ante isto que foi apresentado, qual a razão da controvérsia acerca da sua santidade? Por um lado, um aproveitar para denegrir a cORo, por parte dos saudosistas mausoléus comunistas ateus que o acusam de ter sido um agente da Securitate. Mas, acerca disto, bastava que os seus detratores fossem consultar o Conselho Nacional para o Estudo do Arquivo da Securitate (CNEAS).

Aí, e apesar da presença de um documento de cooperação para poder lecionar em Bucareste, multiplicam-se os que, sobre Stăniloae, referem que este era insincero na sua colaboração com os organismos da Securitate. Outros, menos numerosos, apontam que tinha mesmo uma atitude hostil ao Regime, razão pela qual esteve durante anos sob vigia do Departamento de Vigilância Informativa (cf. CNEAS, fundo Retea, dossier 254359, f.1).

Por outro lado, devido ao que só posso estimar ter sido uma indevida precipitação na ausência de discernimento acerca do que, tendo por si sido publicado e editado na supra citada revista “Telegraful român”, era, de facto, o seu pensamento ou o dos seus censores (que o levaram a postular a extradição dos judeus e do povo cigano da Roménia, bem como a escrever encómios a figuras fascistas).

Indevida, sim, pois um já realizado estudo sobre isso mostrou a aflitiva dor que crucificava Stăniloae por ser o involuntário, embora circunstancial e forçado, rosto de ideologias secularistas, desumanas e ateias (cf. CNEAS, Manuscritos de Ion Văleanu [código atribuído a ao novo santo], manuscrito 17). Algo, seja dito de passagem, também testemunhado na correspondência secreta trocada com a sua filha Lidia.

Creio que um minimamente reputado Instituto Nacional Elie Wiesel para o Estudo do Holocausto na Roménia (INEWEHR) deveria ter feito o seu trabalho de caso antes de o associar, sem rigor histórico, a movimentos fascistas como a Guarda de Ferro e o próprio Estado Legionário Nacional Romeno (nome oficial da Roménia durante cinco meses repartidos entre 1940 e 1941). Entidades que, por sinal, foram formalmente condenadas pelo Santo Sínodo da cORo (o que revela, não obstante, a ligação de algum do seu clero e fiéis aos mesmos).

Bem esteve a cORo a este respeito ao não querer dar uma lição de história a quem tanto sofreu (e ainda sofrerá), mas a limitar-se a referir que uma canonização ortodoxa de uma pessoa «não é aprovar todos os aspetos da sua vida», antes «consiste exclusivamente no reconhecimento da santidade com base em testemunhos credíveis e consistentes provas canónicas, históricas e pastorais-missionárias».

Dito isto, talvez agora possa ser oportuno, e conquanto após um diálogo fraterno com o INEWEHR, um ulterior e mais aprofundado esclarecimento acerca de Dumitru Stăniloae pela máxima autoridade religiosa ortodoxa romena. Mas é o que eu disse: tendo a Roménia estado, voluntária ou involuntariamente, ao lado de quem tanto horror infligiu aos judeus (e não só), não pode esquecer essa realidade para não silenciar quem foi silenciado e não esquecer quem foi esquecido. O tempo precisa de amadurecer para que todo o povo romeno de coração limpo volte a celebrar, em paz e felicidade, “o Professor” – inclusive na sua santidade.

Uma santidade que, testemunhada por uma humildade e um gratuito amor sem limites vivido em condições horrendas, poderia transcender confissões, mas apenas conquanto esta tremenda mudança epocal (com as suas regressões copernicianas) for enfrentada, e não sofrida, por todos os cristãos. Aqueles que vivem sabendo que o amor que os guia não é senão Deus a viver neles e que os mais diversos problemas se resolvem com esse mesmo amor exigente a Deus e aos demais.